Tenho que sair - respirar. Estou seguindo para os jardins de Allambra a ouvir o que diz a água daquelas fontes e acompanhar o desenho imperturbável dos zeliges.
Não me venham com jornais sangrentos sob os braços. Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto e de semear pregos por onde passo.
Estou em Essauíra, na costa do Marrocos olhando o mar. Ou em Minas contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.
Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana. Parem de atirar em minha sombra e abocanhar meu texto. Estou tornando a Delfos naquela manhã de neblinas ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.
Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi frente ao Bósforo, quando tentaram me esfaquear na esquina. Jamais permitirei que quebrem as porcelanas e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a reunião de condomínio. Estou nos campos da Toscana onde a gigante mão de Deus penteia os montes e minha alma se sente pequenina.
Dei de mão comendas e insígnias não tenho mais que na praça erguer protestos e distribuir esmolas não é mais a minha sina. Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada e me liberto -na Cidade Proibida na China.
Não adianta o clamor de burocráticos compromissos nem vossa ira. Tenho oito anos saí para nadar naquele açude atrás dos morros e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
Parem de jogar cadáveres na minha porta na minha mesa na minha cama dificultando que alcance o corpo da mulher que amo.
Afastem de mim o meu o vosso cálice. Impossível ficar no tempo que me coube o tempo todo preciso repousar num campo de tulipas reaprendendo a ver o que era o mundo antes de como um Sísifo moderno desesperado julgar -que o tinha que carregar.
3 X NIETSZCHE
1
Deus não precisa da autorização de Nietszche para existir nem de fanáticos que declaram guerra aos infiéis.
Deus -ou que nome se lhe dê- não necessita de preces, lágrimas, promessas.
Deus sequer lê poemas. Na melhor das hipóteses -os escreve mas não assina nem os divulga.
Na verdade, não necessita sequer de nossa leitura.
Ele está em todas as partes e acha vã nossa procura. E quando lê livros de filosofia, ri, soberano -de nossa loucura
2
Quando Deus tomou conhecimento das teorias de Nietzsche sobre a “ morte de Deus” estava, como sempre, ocupado em fazer e refazer galáxias pelo elementar prazer divino de recriar-se eternamente.
Desconsolado, então, Nietzsche se matou.
Pesaroso, Deus foi ao seu enterro como não podia deixar de ser.
3
Ele vai ao Grande Mercado Nietzsche adquirir artefatos para seu discurso.
Há ferramentas para multiuso abrem e fecham qualquer porta e conceito.
Na entrada deve-se pegar um cestinho para colher o que se pode das prateleiras.
Se não se acha o que se procura basta ir um quarteirão mais adiante em duas lojas tudo se encontrará -uma se chama Foucault - a outra Derrida.
PREPARANDO A CREMAÇÃO
1
Levanto-me. Vou ao cartório autorizar minha cremação. Autorizar que transformem minhas vísceras, sonhos e sangue em ficção.
O que pode haver de mais radical? Assinar este papel tão simples tão fatal. Autorizar a solução final de todos os poemas. .
2
Faz um belo dia. Do terraço vejo o mar: pescadores cercam um cardume banhista seguem se expondo à vida, ao sol. Olho a trepadeira de jasmim os vasos de begônia e gerânios margaridas brancas e a azaléia: -a vida continua viva dentro e ao redor de mim.
Poetas antes e depois de Homero tentaram cantar a morte. (Nos consolaram). Hamlet (cioso) dialogou com uma caveira de antemão. Olho cada parte de meu corpo que vai se desintegrar: mexo os dedos, vejo as veias e no espelho esse olhar que nada mais verá.
Irei à praia daqui a pouco mas antes passarei pelo cartório.
3
Há muito venho me preparando me despedindo do sorriso da mulher, das filhas da rua onde diariamente passo me despregando dos livros vizinhos e paisagens.
Não sou só eu. Minha mulher antes de mim no mesmo cartório foi e ainda mostrou-me o documento.
Olho-a neste terraço: lá está ela, viva! ligada nas plantas e planos. Olho-a: acabou de fazer um vestido novo. Como imaginá-la no jamais?
Ao lado, o barulho de um túnel que estão cavando: -é a nova estação do metrô. Há um alarido de crianças na escola vizinha e eu saio numa esplêndida manhã de sol para cuidar de minhas cinzas.
Tenho muito que dialogar com a morte e a vida ainda.
Affonso Romano de Sant'anna nasceu em Belo Horizonte, 1937. Poeta, ensaísta e cronista, autor, dentre diversos outros, de "Poesia sobre Poesia" (1975), "A Grande Fala do Índio Guarani" (1978), e "Que País é Este?" (1980). Site oficial.
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número
10 - teresina - piauí - julho agosto setembro de 2011]