Vem vindo devagar o rolo negro o odor acre em volutas que o nariz persegue salpicos de cinza depositam-se no terraço entram fagulhas pelo quarto dentro e uma nuvem chamuscada de borboletas.
A colcha branca da cama manchada com um crime alheio afinal nosso é de todos o crime com mata em chamas ou rios pútridos todos somos criminosos erguem-se gritos sob a ameaça o fogo tão próximo das casas uivam cães os lobos já não existem e as lagartixas correndo loucamente em busca de um buraco no chão ocupado já por escaravelhos uma cobra aflita e outros animais que tentam a salvação e voltam para trás mas acabam predador e presa por partilhar a mesma lura subterrânea enquanto no mundo dos homens lavrar mais escândalo ainda do que flamas.
A mãe Gaia agarra-nos agora pelos pés sem raivas sem espírito de vingança não é sequer um julgamento apenas o resultado da nossa arrogância. Piores somos que bestas animais sem raciocínio nem piedade merecíamos tribunal e essa imagem de Salomão a espada na mão direita a ameaçar a criança suspensa da mão esquerda. Mas não temos aqui nenhum tribunal nem juízes cruéis justos ou santos. Gaia é um super-organismo Terra-Mater ignora sentimentos de vingança. O eterno riso na boca dá-nos sem cobrar o troco do mal que lhe infligimos lume para nos queimarmos. Sem árvores não há oxigénio resta-nos morrer asfixiados.
In «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo
A figueira
Há tantas Ficus tantas Asvattha ou F. religiosa é só um entre mil exemplos como as da borracha... Mas agora quero é figos e para figos basta a bíblica figueira que devia ser a Ficus carica ou não... Dobra-se tocando a finados retorcida como cordas de navio a vencer as misteriosas tempestades do inverno.
A Gravelina costumava sentar-se debaixo da figueira com uma broa de milho e ia comendo figos com pão. Assim procedia ano após ano e a figueira até já a conhecia e chegava-lhe à mão os figos mais pingados de mel na ponta dos ramos.
Um dia a Gravelina caiu e bateu com a cabeça nos degraus de pedra da escada.
Não resistiu passados dias a Gravelina morreu.
Nesse ano a figueira não deu figos mirraram-lhe os ramos as folhas amareleceram secou da raiz à copa com saudades da dona e também ela a figueira da Gravelina morreu.
E há outras figueiras ainda de interditos figos mais que os trinta dinheiros fáceis da traição o punhal enterrado nas costas nem de Cristo nem de Judas antes pelo contrário.
É sempre o mais próximo o que sem direitos julga o que sem poderes condena o que sem piedade executa o que mais fundo corta o tronco da árvore é esse o que nos arranca da terra-mátria pela raiz sem as vertigens da compaixão.
Pois nesse ano a figueira não deu figos. Com saudades da Gravelina também ela a Ficus carica que lhe dava os figos para comer com pão morreu.
In «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo
A cerejeira
São pessoas com raízes tão fundamente enterradas no coração que sangram por espinhos finos acúleos e deixam regos de cicatrizes.
As árvores são antepassados de braços erguidos sobre a cabeça com cabelos encarapinhados.
Caem de maduros frutos doces da cabeça dos homens pensamentos luxuriantes entre os quais repicam sinos.
Somos a cerejeira de vermelhas bagas como brincos nas folhas de pequenas orelhas ouriculares no cadinho das letras audíveis estrelas brilham com seus dentes de ouro na cúpula sombriamente noturna a escorrer tinta azul dos dedos.
Em baixo correm riachos subterrâneos até ao caranguejo de lava do centro incandescente da terra que tudo alumia e alimenta.
Cintilam ideias, fulguram mentes agitam-se as folhas tagarelas dos choupos tremedores mas nós somos a interdita cerejeira de punhais trespassada à porta dos pais fechada os velhos sentados na pedra antiga dos provérbios contados ao sol, diante da velha choupana enquanto galinhas debicam grãos de sol na crepitação da palha despedem centelhas os folículos das espigas e rente ao chão nos agostos insondáveis as manchas prateadas da colcha acetinada das gramíneas. Por cima de tudo isto, as árvores. Essas pessoas de chapéu na cabeça para proteger os pensamentos e de mão encostada ao lado esquerdo do peito a serenar o coração.
Meu coração não te partas como travessa de barro pesada de arroz de mágoas os olhos no luto do forno carbonizados sem dizer adeus nesta despedida imóvel à porta da casa de deus fechada entre olivas cinéreas ao trémulo clarão da cerejeira.
Lá longe, o negro túmulo abeira-se de um arbusto de recordações bagas num perigo vermelho que nem pintam nem são passas antes colar de pérolas de veneno.
Chegam pássaros de bico dourado para o repasto das árvores e caem mortos, caem mortos com tanta fruta no chão que ninguém aproveita mas deixar os pássaros comer, isso é que não!
Gaia, a superterra, a deusa-mater feita de estruturas e relações não sabe sentir vergonha nem ódio contra esta gente que ainda não saiu da fase evolutiva de macaco. Por isso não se vinga apenas nos dá o troco dos nossos atos: mosquitos com fartura, baratas tremendas as casas invadidas pelos ratos e fruta sem gosto, envenenada as alfaces radioactivas que nos fazem cair os cabelos e os dentes das gengivas. Quando era tão fácil deixar comer as aves numa terra em que há cerejas para todos.
Zumbem abelhas à volta do tronco alto e carcomido dos anos porque as árvores envelhecem como os amos e merecem como eles morrer disso.
Idosa cerejeira, tocada um pouco de Alzheimer, ampara-te ao meu braço amigo.
Eis porém que chega o carniceiro com seu cutelo de fio fino à garganta da mãe apontado. O tronco dobra-se para dentro os ramos apertam-se em torno da dor salta uma espadana de sangue cerejas vermelhas cerejas de sangue salpicam de sangue cereja o áspero térreo chão.
Outra machadada no tronco da única árvore de porte no terreno anciã do pomar os cabelos de líquenes brancos já anunciando morte a seu tempo sem precisão de eutanásia. A velha grita que não fez nada a velha agarra-se ao sofrimento próprio e alheio e geme que não foi ela não foi ela quem interditou aos pássaros as mais altas cerejas da idosa cerejeira é só um grito único a varrê-la das raízes à cúpula dos pensamentos rubis amargos verdes ramas rubis amargos sangue em gotícolas que se espalha e a seiva de sangue é um regato que se derrama do coração aos pés da velha árvora decana nesse campo onde outrora com nobreza a nobreza que nunca mais se viu em casa nem casinhas nem casota com nobreza de sangue à sombra da elevada cerejeira erguia-se uma graciosa choupana.
Caem-lhe um a um os braços num roçagar de folhagem e estampido breve das projetadas cerejas colares de coral vivente em sumo solto abaladas lágrimas de ferida pungente o tronco aberto à facada a ver-se-lhe tudo por dentro: o coração partido, as tripas enroladas, os rins decepados que mal se seguram por um fio e a seiva vermelho vivo de cochinilha que escorre goma animal nos dentes. A besta armada de cutelo e machado e punhal abate abate abate a velha cerejeira só para mostrar ao mundo que tem tomates.
Zumbem abelhas à volta dos toros ensanguentados e carcomidos dos anos no chão sem sentidos empilhados porque as árvores envelhecem como os amos e merecem como eles morrer disso.
In «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo
Mãe Gaia
Sento-me na varanda quando são de seda as tardes de Verão. A cadeira balouçante na brisa, perdidos os olhos, a memória e os sentidos no perfil azul-sombrio da Serra do Marão.
Contudo, terra minha mais do que Maranus e Britiande, em Lamego, é Gaia, a biosfera, lápis-lazúli de ânsia em que vogam, gigantes, as Victoria regia das estrelas.
E mais terra ainda do que essas é a secura desta falta de sementes amara duna o nada florir a nascente além da vinha e dos pomares como reconhecida cultura.
Vai morrendo lentamente a esperança e sei que somos nós o parasita terra que à terra volveremos sem o bombom de um novo ab initio.
Numa qualquer tarde sem ar limpo nem límpida transfusão da luz pela vidraça de fumo da atmosfera mergulharemos no nada como o precipício em que se aterra sob o seu próprio peso o céu outrora anil-olímpico agora da saudade o xaile verde. Do pó ao pó eis a Terra.
In «Risco da Terra», Apenas Livros, 2011
Figurinhas da Sé de Lamego
Uma passadeira vermelha merecia A tão solene e séria Sé de Lamego Mas meus paleo-avós eram peões decerto E lavradores os antepassados mais recentes. Mais nos excitamos com o porco a chiar na panela Do que com as flamas do divino elevando-se da pedra. à porta da Matriz, vagina aberta de fome, Em arcos esculpidos pelos pedreiros livres Restos de figurinhas desinquietam-nos Em diversas transgressões sexuais. Muitas os padres, Judas da moral que pregam, As mandaram partir, por imorais. Porém uma sobra, plena de encantamento: Delicada cena de fellatio A garantir a cópula entre o céu e a terra. E isso, a nós, peões e camponeses, mas herdeiros De Gil Vicente e até de Rabelais, Isso excita-nos porque liga o espiritual ao indecente, Anuncia missas do burro, esfuziantes carnavais, Reserva no adro a vida, já que no altar-mor definha a fé.
In «Risco da Terra», Apenas Livros, 2011
O Túnel de luz branca Ao José Augusto Mourão
Oiço-o, amigo, Tão desolado a dizer Dessa terra além-terra Onde se entra por um túnel de luz branca Avassaladoramente cintilante «Já lá estive e não vi nada »
Nesse túnel já muitos entrámos Mas só quem sai pode dizer que ao fundo dele Não há nada. Em todo o caso, amigo, neste dia De quase coma em que dormita E espero só exista no seu pensamento O rasto dulcificante das papoilas Recordo o que me disse e é mais pungente Que a passagem na fronteira da morte Na sua viagem sem regresso.
Maria Estela Guedes (1947, Britiande - Portugal). Diretora do TriploV (www.triplov.com) ALGUNS LIVROS. Herberto Helder, Poeta Obscuro, Lisboa, 1979; Mário de Sá Carneiro, Lisboa, 1985; Ernesto de Sousa Itinerário dos Itinerários, Lisboa, 1987; à Sombra de Orpheu, Lisboa, 1990; Prof. G. F. Sacarrão, Lisboa, 1993; Tríptico a solo, São Paulo, 2007; A poesia na Óptica da Óptica, Lisboa, 2008; Chão de papel, Lisboa. 2009; Geisers, Bembibre, 2009; Quem, às portas de Tebas? Três artistas modernos portugueses, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, 2010. "Risco da Terra", Lisboa, 2011. TEATRO. Multimedia O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; A Boba, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número
10 - teresina - piauí - julho agosto setembro de 2011]