A poesia não é feita só com palavras: Prosas seguidas de Odes mínimas, de José Paulo Paes
Cilene Margarete Pereira Luciano Marcos Dias Cavalcanti
RESUMO: Este texto
pretende estudar o modo como José Paulo Paes concebe sua criação poética em Prosas seguidas de Odes mínimas. Segundo
o poeta, sua concepção artística parte do pressuposto de que a poesia não pode
ser realizada apenas pelo labor técnico; à busca pessoal soma-se o caráter
técnico do trabalho poético.
PALAVRAS-CHAVE: José Paulo Paes;
labor técnico; vida e obra.
ABSTRACT: This text intends to study as José Paulo Paes conceives
its poetical creation in Prosas seguidas
de Odes mínimas. According to Poet, its poetical conception part of the
estimated one of that the poetry cannot be carried through only by the work
technician: to the body search, the character is added technician of the
poetical work.
KEYWORDS: José Paulo Paes; work technician; life and workmanship.
José
Paulo Paes principiou seu aprendizado poético através da leitura de grandes
poetas da língua portuguesa. O primeiro autor importante – e que desenvolveu o seu
gosto pela poesia – foi Augusto dos Anjos, poeta lido com espanto e devoção de
um fiel que absorve as palavras do seu guru. Foi com o autor de Eu e outras poesias que José Paulo Paes
diz ter percebido o que é a poesia: “A poesia como linguagem de descoberta e
apropriação do mundo; como fala inaugural diante da surpresa da vida, a vida de
fora e a vida de dentro; como a fundação do ser pela palavra referida por
Heidegger a propósito de Hölderlin, o poeta dos poetas.” (PAES, 1991, p.183).
Outra
influência importante para Paes foi a de Manuel Bandeira posterior ao livro A cinza das horas (1917), momento que o poeta pernambucano abole
o verso metrificado, aderindo, como ninguém, à liberdade formal dos versos
livres que, inicialmente, trouxeram certo desconforto ao próprio Paes,
acostumado, como tantos outros leitores, aos versos de métrica martelada e rima
regular e a uma linguagem afetada e ornamental. Além de Bandeira, outro
modernista exerceu influência decisiva na poética de José Paulo Paes: a poesia
do “primeiro” Carlos Drummond de Andrade, de humor prosaico e cotidiano, distante
ainda dos versos engajados da Rosa do
povo. Foi a descoberta e o entendimento íntimo destes dois poetas
modernistas – que tiveram como fonte básica de suas poéticas a negação da eloquência
e a busca das coisas simples – que trouxe a José Paulo Paes o tema e a maneira de
sua própria poesia.
Um fato
relevante no percurso poético de José Paulo Paes foi o recebimento de uma generosa
crítica do renomado crítico Sérgio Milliet, no Estadão, que o levou a “andar nas nuvens uma semana inteira[1]”
(PAES, 1991, p.186). Esse fato soma-se ao recebimento de uma carta do poeta de Alguma poesia comentando seu primeiro
livro, O aluno, em que Drummond
informa a José Paulo Paes a importância da autocrítica e da busca de sua
própria expressão poética.
A
influência de Oswald de Andrade, do Cântico
dos cânticos para flauta e violão – modernista de primeira ordem –, é
percebida na poética de Paes a partir da fusão entre lirismo e ideologia por
meio do humor. Este aspecto permitiu ao jovem poeta fundir sua participação
política – proveniente de sua militância na esquerda estudantil –, as leituras
de orientação marxista e dos romances sociais e políticos de Jorge Amado,
Gorki, entre outros, e mesmo do existencialismo de Sartre ao lirismo
poético.
José
Paulo Paes, através de Cassiano Ricardo, também estabeleceu uma relação
frutífera com os fundadores do Concretismo. Ambos tinham uma inquietação comum:
a preocupação antirretórica, a ênfase na medula ideogramâmica das palavras.
Preocupação que ia ao encontro da busca da concisão epigramática que Paes já
cultivava desde Anatomias (1967), Meia palavra (1973) e Resíduo (1980).
A
cidade de Curitiba, local de convivência com escritores e artistas no Café Belas-Artes, também foi fundamental
para sua formação poética e careira posterior. Neste ambiente, Paes conviveu
com o poeta Glauco Flores de Sá Brito, o contista e crítico de cinema Armando
Ribeiro Pinto, o jornalista e ensaísta Samuel Guimarães da Costa, o crítico de
arte Eduardo Rocha Virmond, o pintor Carlos Scliar (intelectuais filiados ao
grupo da revista Ideia), e com o grupo
da Livraria Ghignone, frequentada por
Wilson Martins, Temístocles Linhares e por Dalton Trevisan, o fundador da
revista Joaquim, da qual Paes foi dos
colaboradores.
De
todos esses escritores, Paes ressalta a importância do poeta Glauco Flores de
Sá Brito, responsável pela lição de que poesia não se faz somente com palavras,
“mas com vivências, reais ou imaginárias, capazes de encontrarem as palavras
certas para se exprimir.” (PAES, 1991, p.186), contrariando a conhecida premissa
poética de Mallarmé. Essa concepção do fazer poético norteia o centro de usa
poesia e é através dela que analisaremos alguns textos de Prosas seguidas de Odes mínimas (1992).
Ao defrontarmos
com a poesia de José Paulo Paes dois aspectos chamam logo a atenção: a presença
de um refinado tom humorístico com que o eu lírico observa (ironicamente) as
contradições do mundo e a simplicidade da escrita, tanto da matéria poética –
que é captada no cotidiano – quando da forma preferencialmente utilizada pelo
autor, o epigrama e o chiste. Nesta aliança perfeita entre conteúdo e forma, o
epigrama torna-se seu modelo predileto.[2]
Segundo
Massaud Moisés, o espaço breve do epigrama é “o suficiente para que desse corpo
à novidade descoberta do cotidiano mais banal, fruto das suas antenas
sensíveis, sintonizadas com todas as coisas ao redor, ou desentranhada das suas
reminiscências biográficas...”. (MOISÉS, 1998, p.21). Essa predileção de José
Paulo Paes às formas breves está vinculada à sua matéria poética: para se falar
de coisas banais e simples do dia-a-dia a melhor maneira é simplificar,
condensar as imagens.
A
utilização dos elementos simples do cotidiano estava já prenunciada na poesia
de José Paulo Paes que “começou como um herdeiro do modernismo”, trilhando
pouco a pouco um caminho que “o levaria à casa e aos objetos pequenos do
cotidiano. Essa exaltação e maravilhamento diante do cotidiano começaram de
fato desde o início por um verso desinflado e que prestava atenção às pequenas
coisas simples e corriqueiras da vida de todo dia...” (ARRIGUCCI, 1999, p.60). Assim,
as lembranças da casa em Taquaritinga – onde nasceu – dos familiares e da
infância e dos sonhos serão matéria de muitos de seus poemas, sobretudo nos
últimos livros. Quanto mais perto da morte – que viria em outubro de 1998 –
mais os seus temas se aproximam “da memória e dos conteúdos subjetivos”, lembra
Fernando Paixão (1999, p.53).
Prosas
seguidas de Odes mínimas, considerado um dos melhores livros de José Paulo Paes,
é dividido em duas partes. Conforme sugere o título do volume, na primeira parte
localizam-se as “prosas” e, na segunda, encontram-se as “odes” denominadas pelo
poeta de “mínimas”. Nas prosas é possível perceber uma predileção pelo tom
memorialista com o qual o poeta reflete sobre sua própria existência a partir
da inserção em um mundo onírico e de personagens singulares, como os pais, os
avós, tios e tias, e, até mesmo, os loucos de sua cidade natal. Cria-se,
portanto, um “clima rememorativo”. Na segunda parte do livro, os poemas são
mais objetivos e o tom irônico é dominante.
Os poemas deste livro foram escritos nos
últimos cinco anos que antecederam sua publicação, entre 1987 e 1992, período em que José Paulo Paes teve sua
perna esquerda amputada. Nas palavras do poeta, estes poemas “de certo modo
estão ligados a esta peripécia, tanto que um dos poemas é uma ode a minha perna
esquerda. Essa foi uma fase difícil da minha vida (...) e nessas ocasiões, a
gente repensa os valores.” (PAES, 1999, p. 41). É a essa experiência dolorosa e
a retomada de valores que o poeta atribui o caráter memorialista de uma grande
parte dos poemas de seu livro. Neste período difícil, um acontecimento frequente
e marcante foi o da experiência onírica, através de sonhos permanentes e
insistentes que estavam sempre relacionados à “experiência traumática” da sua
infância e da sua juventude.
A relação entre o onírico e o poético vem
de longa data. Podemos encontrar na linguagem lírica inúmeras referências ao
sonho como um estado espiritual que proporciona ao poeta uma espécie de
elevação da alma, de perfeição instintiva, de beleza ou de liberdade criativa.
Nesse sentido, a poesia renuncia à ordem objetiva e à lógica para se colocar ao
lado de outra característica marcante: a magia.Para isso, ela não tratará descritivamente os seus
assuntos, conduzindo-nos ao âmbito do não familiar, através de deformações e
estranhezas. Assim, a lírica trocará formalmente o vocabulário usual pelo
insólito; a sintaxe desmembra-se ou reduz-se a expressões nominais
intencionalmente primitivas; a metáfora e a comparação são aplicadas de uma
maneira nova, forçando a união do que parece ser inconciliável. Esta lírica não
almeja a cópia do real, mas, sim, a sua transformação. Para isso, o poeta
utilizará do sonho e da fantasia, caminhos mais favoráveis para elevar sua
capacidade criativa. De acordo com a teorização de Charles Baudelaire, apontada
por Hugo Friedrich, “a fantasia decompõe (decompose)
toda criação; segundo leis que provêm do mais profundo interior, da alma,
recolhe e articula as partes (daí resultantes) e cria um mundo novo.” (Apud:
FRIEDRICH, 1991, p.55). A aspiração anterior à cópia é contraposta à fantasia e
ao sonho, proporcionando o enriquecimento e aumentando imensamente a possibilidade
criativa do artista.
O poema “A casa” nasce dessa experiência
onírica juntamente às suas lembranças da infância, quando o menino José Paulo
sempre voltava, no momento das férias escolares, para o local de nascimento.
Ele conta que depois da morte de seus pais, avós e tios, a casa acabou fechada.
Em seus sonhos vinha insistentemente a imagem da casa abandonada: “Daí nasceu o
poema ‘A casa’, em que tento recuperar a atmosfera da casa, do ponto de vista
não mais da criança, mas do homem de 65 anos que vê uma casa fechada e
assombrada.” (PAES, 1999, p.42).
Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com
corações de
purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e pro-
gramas de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o
fim dos tempos.
No quarto uma mãe que está sempre parindo a última
filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu
próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas
da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do
outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Pra-
guai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso espia todos eles;
só que
está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-
na
depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.
Poema que também se relaciona ao
sonho, mas no sentido de anseios, é “Noturno”. Neste poema, o mundo assume
proporções gigantescas em relação às experiências que cerca o adolescente. O
apito do trem é a imagem que nos revela a grandeza do mundo em oposição à
redução do quarto, espaço íntimo do adolescente-personagem. É o aviso sonoro do
trem que cria a imagem da pequenez do quarto, que se encolhe perante a vastidão
de outros espaços. Com esta oposição, inseri-se uma espécie de exílio, já que o
adolescente se acha distante do mundo e de sua vastidão experimental – vastidão
que só pode ser alcançada através da imaginação e, principalmente, dos anseios
juvenis. É a busca, através dessa imaginação, que traz à tona a consciência das
experiências ainda inéditas.
O apito do trem
perfura a noite.
As paredes do
quarto se encolhem
O mundo fica vasto.
Tantos livros para ler
tantas ruas por andar
tantas mulheres a possuir...
Ao fim do poema, fica-nos a certeza, própria
da adolescência, no futuro e, claro, no alcance da vastidão do mundo através do
domínio das experiências.
Quando chega a madrugada
o adolescente adormece por fim
certo de que o dia vai nascer especialmente para ele.
Fica
sugerido, nos últimos versos do poema, certo tom irônico do eu lírico que
parece acompanhar todos os sonhos do jovem com um olhar amadurecido; portanto,
mais consciente da real possibilidade de alcançar e dominar as experiências.
A busca da experiência como elemento
indispensável à aprendizagem e inserção do jovem no mundo também se encontra no
poema “Canção do Adolescente”. Nele, a figura híbrida do jovem – que não é
criança; muito menos adulto – só pode ser salva através do conhecimento que a
experiência do mundo proporciona.
Se querei salvar-me
Desta anatomia,
Batizai-me depressa
Com as inefáveis
As assustadoras
Águas do mundo.
É esse batizado em “águas
assustadoras”, porém necessárias – espécie de rito de passagem –, que
transformará a estranha anatomia do adolescente em um corpo maduro e
experiente.
Outro
poema se relaciona aos dois já mencionados, “Iniciação”. Nele temos também o
tema da busca pela experiência; no caso, amorosa. Como sugere o próprio título
do poema, trata-se de um aprendizado em que as iniciais dos nomes das mulheres
com as quais ocorrem as relações sexuais do eu lírico estão em evidência: A, B
e C, cada uma delas particularizada pela erotização do corpo feminino (seios,
popa, coxas). Neste ABC do jogo amoroso (e sexual) são criadas imagens do gozo
como “morte”, “combustão”, “cegueira” e “surdez”. Essas imagens, aparentemente negativas,
representam a mistura do medo e da excitação, próprias da iniciação sexual.
Com os olhos tapados pelas minhas mãos, os dois seios
de A. tremiam no
antegozo e no horror da morte
consentida.
De ventosas aferradas à popa transatlântica de B., eu co-
nheci a fúria das
borrascas e a combustão dos sóis.
Pelas coxas de C. tive ingresso à imêmore caverna onde
o meu desejo ficou
preso para sempre nas sombras da
parede e no latejar
do sangue, realidade última que cega
e que ensurdece.
Assim
como em “Noturno”, podemos perceber, em “Iniciação”, a presença de um eu lírico
maduro que parece reviver, através da memória, traços de sua adolescência. Por
isso, temos a impressão de duas vozes se chocando, a do jovem – repleto de
sonhos e medos – e a do homem – acrescida do amadurecimento das experiências
vivenciadas; recheada, logo, de uma visão mais real, menos idealizada. É a
oposição entre essas duas vozes que cria uma fina camada irônica sobre o texto.
Em grande parte de Prosas
seguida de Odes mínimas vemos o poeta resgatar personagens, ambientes e
cenas da infância que estruturam não só sua obra, mas também sua vida. Numa
espécie de epifania, a memória do poeta mostra o que há de mais íntimo e
profundo e nunca esquecido de sua vivência infantil. Estas lembranças pertencem
tanto ao universo mágico e mítico quanto à sua vivência real. Desse modo, o
poeta constantemente acena ao passado, distante de sua realidade adulta, de
modo que o vivido e o imaginário infantil é reatualizado, materializando-se no
poema. Nesse sentido, a criança está constantemente presente no poeta, fazendo
com que a emoção infantil não se perca com o passar do tempo, mas se
identifique com a própria sensibilidade poética. Portanto, podemos dizer que o
poeta busca resgatar um passado vivo que permanece atuante no presente, de
forma intensa, permitindo que ele resgate um mundo perdido, capaz de reorientar
o tempo presente. É exemplar e revelador o poema “Escolha de túmulo” em que o
poeta revela a importância da infância para sua poesia.
Onde os cavalos do sono
batem cascos matinais.
Onde o mundo se entreabre
em casa, pomar e galo.
Onde ao espelho duplicam-se
as anêmonas do pranto.
Onde um lúcido menino
propõe uma nova infância.
Ali repousa o poeta.
Ali um vôo termina,
outro vôo se inicia.
Como podemos notar a infância e a poesia encarnam um poder
transformador, como se possuíssem a capacidade mágica de mudar o mundo. Na
verdade, parece mesmo assegurar a magia dessa junção, transformando o mundo
presente em sonho, seja por meio do lúdico, seja através do encantamento,
elementos próprios do mundo infantil e do poético. Dessa maneira, José Paulo
Paes leva a sua poética o menino que existe nele, já que seu poema apresenta toda
bagagem cultural adquirida na infância do escritor, somada, principalmente, ao
seu caráter imaginativo. Assim, a poesia se dá como meio de preservação, no
adulto, da eterna infância e de seu olhar sobre o mundo, sempre renovador. Em
resumo, o poeta faz renascer em sua poesia, por meio da imaginação infantil e
seu poder mágico – através do lúdico e do encantatório –, um novo mundo, uma
espécie de gênesis sempre recriado; a cada criação e/ou invenção, o poeta
transfigura a realidade renovando-a em seu poema.
Outro
traço que parecer marcar, com insistência, os poemas de Prosas seguidas de Odes mínimas é o encontro com os mortos – alguns
bem conhecidos –, seja através dos sonhos como ocorre em “Reencontro” e no já
citado “A casa”, seja por meio do exercício da imaginação:
Ontem, treze anos depois de sua morte, voltei a me en-
contrar com Osman
Lins
(...)
Tampouco disse coisa alguma quando o fui cumprimen-
tar. Mas o seu
sorriso era tão luminoso que eu acordei.
(“Reencontro”)
Nunca mais o vi? Vi-o uma última vez.
(...)
Ele estava sentado na platéia bem atrás
com sua boina azul
já póstumo mas divertido de ver o irrespeitável público
comendo finalmente
do biscoito de massa mais fina
(“Prosa para Miramar”).
Se nas “prosas”
de José Paulo Paes permanecem um tom memorialista e alguns poemas parecem um
tanto confessionais; já nas “odes”, o caráter mais irônico e, portanto, mais
crítico irá prevalecer. Essa é uma tendência que surge, segundo o poeta, “a
partir de Novas cartas chilenas”,
momento em que sua poesia “fica impessoal” e se “debruça sobre o mundo,
principalmente para vê-lo sob lentes críticas, ideologicamente informadas. Eu
me debruço sobre a sociedade de consumo para denunciar a pequenez e as misérias
dela.” (PAES, 1999, p.45).
Em Prosas seguidas de Odes mínimas temos
vários poemas que exemplificam esta crítica a que se refere o autor. Na ode “à
Televisão”, depois de enumerar diversas experiências que poderiam ser vividas
pelo telespectador, – como ir lá fora para saber se chove ou faz sol; comer uma
suculenta comida com os próprios dentes ou viver os pequenos dramas do
cotidiano – o eu lírico resolve anular seu contato com o mundo em troca das
experiências, já prontas e filtradas, dadas pela televisão.
Guerra, sexo, esporte
- me dás tudo, tudo.
Vou pregar minha porta
já não preciso do mundo.
Numa
crítica irreverente à televisão, José Paulo Paes denuncia a manipulação de
imagens e sensações transmitidas por este meio de comunicação que é o grande
veículo ideológico da sociedade de consumo. A grande tecnologia inutiliza a
necessidade de viver e, com isso, a capacidade de socialização do ser humano:
por que viver a experiência se podemos tê-la pela TV? Esta é a grande pergunta
do poema, que poderia apresentar como resposta, talvez, outra pergunta: por que
não?
Em
outra “ode”, desta vez dedicada a outro ícone da sociedade de consumo, o
shopping center, vemos a via-sacra
dos consumistas que vagueiam de loja em loja à procura da satisfação dos
desejos – possíveis, até certo ponto, de serem realizados na “Grande Liquidação”:
De elevador ao céu
Pela escada ao inferno:
Os extremos se tocam
No castigo eterno
Cada loja é um novo
Prego na cruz.
Por mais que compremos
Estamos sempre nus.
(“Ao shopping center”)
Outro
tipo de crítica que acaba por perpassar este livro de José Paulo foi
identificado por Izidoro Blikstein no poema “Aos óculos”. Este poema seria,
para Blikestein, “a melhor expressão do modo pelo qual nós somos condicionados
a um processo de estereotipia”, que nos impede de pensar ou ver livremente. (BLIKESTEIN,
1999, p.57).
Já não vejo as coisas
como são: vejo-as como eles querem
que as veja.
O que
nos impede de ver livremente são os óculos sociais que nos condicionam a uma
realidade preparada cultural e socialmente. Esta espécie de estereotipia está
presente também na “ode” “à impropriedade”. Neste poema, José Paulo Paes
trabalha com a inversão de estereótipos a respeito do povo brasileiro. A ironia
no texto está não só na inversão – que conduz à frase original –, mas na
introdução do ditado popular: “deus nos livre e guarde” tão mecanicamente usado
quanto às expressões que quer retomar.
De cearense sedentário
baiano lacônico,
mineiro perdulário
Deus nos guarde.
De carioca cerimonioso
Gaúcho modesto
Paulista preguiçoso
Deus nos livre e guarde.
Talvez
o poema mais importante do livro seja o que abre a sua segunda parte, “à minha
perna esquerda”. Nele José Paulo Paes dedica uma “ode” à sua perna amputada, um
bloco de poemas dividido em sete partes. Este poema é representativo de sua
obra poética, pois podemos ver nele uma espécie de síntese de todo seu livro.
Neste canto de louvor não sentimos um tom amargurado que poderia requerer o
tema, mas certa resignação aliada a alguns elementos típicos da poesia de José
Paulo, o humor e a ironia.
1
Pernas
para que vos quero?
Se já não tenho
por que dançar.
Se já não pretendo
ir a parte alguma.
Pernas?
Basta uma.
De
forma irônica, o poeta inverte uma frase utilizada corriqueiramente quanto se
quer frisar a importância das pernas para fugir a um perigo iminente: “Pernas
pra que te quero!”. A inversão do ponto de exclamação para o ponto de
interrogação mostra a mudança do clichê usual da frase banal, assim como a nova
situação que o eu lírico vivencia ao perder sua perna. Como é usual no emprego
da ironia, o poeta inverte o sentido primeiro da frase para anunciar o oposto,
dizendo que não precisa de duas pernas.
O
terceiro bloco do poema, diferentemente do primeiro, se mostra comovente com a
entrega do poeta à sua musa, Dora.
3
Aqui estou,
Dora, no teu colo,
nu
como no princípio
de tudo.
Me pega
me embala
me protege.
Foste sempre minha mãe
e minha filha
depois de teres sido
(desde o princípio
de tudo) a mulher.
Vemos neste
quadro um poeta lírico, o que se contrapõe a sua verve satírica, exprimindo
toda sua dor por meio da exposição profunda de sua fraqueza. Uma dor que só
pode ser aplacada ou amenizada por sua musa que lhe dá proteção. Situação
comovente, pois de maneira profunda vemos o desnudamento total do ser que se
mostra sem nenhum artifício, está nu. O que temos aqui é a expressão de uma
beleza e uma dor imensa que só um grande poeta é capaz de revelar.
Contrapondo
a esse tom lírico, no quinto bloco do poema vemos um diálogo imaginário do
poeta com a perna que vai ser amputada, no qual retorna o tom satírico. Ao se
despedir da perna, podemos dizer que o poeta, utilizando-se da metonímia da
perna, acaba por exorcizar a relação do indivíduo com a morte.
5
Chegou a hora
de nos despedirmos
um do outro, minha cara
data vermibus
perna esquerda.
A las doce em punto
de la tarde
vão-nos separar
ad eternitatem.
Pudicamente envolta
num trapo de pano
vão te levar
da sala de cirurgia
para algum outro (cemitério
ou lata de lixo
que importa?) lugar
onde ficarás à espera
a seu tempo e hora
do restante de nós.
No sexto
bloco do poema a ausência da perna esquerda é novamente tratada de maneira
jocosa e serve à criação de uma imagem especial no poema: a marcha. Mas uma
marcha interrompida brutalmente pela ausência da perna esquerda que ocupa agora
a eternidade. Situação que concorda com o diálogo cômico-metafísico do poeta
com sua perna no último bloco do poema.
6
esquerda direita
esquerda direita
direita
direita
Nenhuma perna
é eterna.
A
presença da memória na poética de José Paulo Paes constitui um longo processo
de imersão no passado, cujo ponto terminal é a infância, momento incorruptível
da vida e dimensão irresgatável da existência antes do toque viciado do mundo.
Através da memória reencontra-se a origem; na recuperação da infância percebe-se
a fuga das circunstâncias existenciais problemáticas do mundo adulto, nota-se o
descontentamento frente ao vivido; procura-se afastar de um meio social cujos
princípios não compartilhamos, numa espécie de tentativa de restauração do
período de onde brotam as nossas recordações mais pessoais. Estas lembranças,
assim entendidas, possuem o significado, dentre tantos outros, do
descontentamento com o presente.
O poeta dá um testemunho da vida moderna e opondo-se a ela procura no
mundo da infância uma resposta a este presente, na tentativa de resgatar os
princípios básicos de união e fraternidade, numa busca de libertação e de
retomada das raízes tanto poéticas quanto existenciais. Daí, essa vontade de
preservação, esse saudosismo, essa procura permanente do tempo primitivo. Nesse
sentido, a elaboração poética empreendida por Paes não pode ser realizada
apenas pelo labor técnico: à busca pessoal se soma o caráter técnico do
trabalho poético. Desse modo, vida e obra caminham juntas sem que seja possível
separá-las; é por isso que vemos presente em sua poética tanto aspectos
biográficos quanto o visível trabalho da linguagem, ambos amalgamados no poema.
Essa construção artística se dá através de fragmentos líricos, míticos,
oníricos, históricos, biográficos, metafísicos, etc.; pelo cruzamento de temas,
situações e técnica.
É
possível perceber que a poesia de José Paulo Paes está inserida no que há de
melhor na poesia contemporânea. Seus poemas trazem a marca inconfundível do
autor que fez de sua matéria poética a simplicidade do cotidiano e elegeu como forma
de expressá-la o breve espaço do epigrama. Sua obra revela, conforme
identificou Arrigucci, “o irônico testemunho de seu mundo, de seu tempo e de si
mesmo...”. (ARRIGUCCI, 1999, p.60).
Referências
ARRIGUCCI JR., Davi. “No mínimo, poeta.” In: José Paulo Paes, o poeta da brevidade. Revista
Cult. N.º 22. São Paulo, maio de 1999.
BLINSTEIN, Izidoro. “A semiótica do verso.” In: José Paulo Paes, o poeta da brevidade. Revista
Cult. N.º 22. São Paulo, maio de 1999.
FERRAZ, Heitor. “A aventura literária de José Paulo Paes:
entrevista com José Paulo Paes”. In: José
Paulo Paes, o poeta da brevidade. Revista Cult. N.º 22. São Paulo, maio de
1999.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura
da lírica moderna: problemas atuais e suas fontes. SP: Duas Cidades, 1991.
MOISÉS, Massaud. A
dimensão de um clássico. Folha de São Paulo
– Mais: São Paulo, 18/10/1998.
NAVES, Rodrigo. “A poesia do homem comum.” In: José Paulo Paes, o poeta da brevidade. Revista
Cult. N.º 22. São Paulo, maio de 1999.
PAES, José Paulo. Prosas
seguidas de Odes mínimas. São Paulo, Cia. das Letras, 1992.
PAES, José Paulo. Poesia
completa. (Apres./Org. Rodrigo Naves). São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
PAES, José Paulo. Os
melhores poemas de José Paulo Paes. (Seleção e introdução de Davi Arrigucci
Jr.). São Paulo: Global, 2001.
PAES, José Paulo. “Um poeta como outro qualquer”. In:
MASSI, Augusto (Org.) Artes e ofícios da
poesia. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1991.
PAIXÃO, Fernando. “O ‘cantinho do Zé’”. In: José Paulo Paes, o poeta da brevidade. Revista
Cult. N.º 22. São Paulo, maio de 1999.
__________
Luciano Marcos Dias Cavalcanti é
doutor em Teoria e História Literária IEL – UNICAMP, Prof. de Literatura ASMEC,
autor de “Música Popular Brasileira e Poesia: a valorização do ‘pequeno’ em
Chico Buarque e Manuel Bandeira”. Belém: Paka-Tatu, 2007.
Cilene Margarete Pereira é
doutora em Teoria e História Literária IEL – UNICAMP, Profa. de Língua
Portuguesa e Literatura no Colégio Sagrado Coração de Jesus, autora de “A
assunção do papel social em Machado de Assis: uma leitura do memorial de Aires.
São Paulo: Annablume-Fapesp, 2007.”
[1] A crítica de Sérgio
Milliet diz o seguinte: “A originalidade dessa poesia de angústia, de
inquietação, está no contraste de sua forma muito pura, muito sóbria, que
assimilou lições nacionais e estrangeiras sem perda para o poeta de uma
personalidade bem distinta da de seus mestres.” (PAES, 1991, p.186).
[2] No estudo que Davi
Arrigucci Jr. faz sobre o poeta, ele define o epigrama e o associa a poesia de
Paes da seguinte maneira: “Em princípio, constitui uma fórmula condensada em
poucos versos, na qual se mescla, os gêneros, podendo combinar a notação épica
do acontecimento e o sentimento do drama ao tom lírico da elegia ou à verve
satírica, a que em geral vem associado em nossos dias. É que além do traço
primitivo da mistura dos gêneros e de extensa voga entre os romanos, ficou-nos
sobretudo do epigrama essa idéia da forma incisiva, voltada para o comentário
irônico ou corrosivamente satírico da vida pública. José Paulo retoma, sem
dúvida, essa tradição da forma epigramática, mas refaz o molde à sua maneira,
ajustando-o, é claro, às necessidades expressivas de nosso tempo e de sua
própria personalidade poética.” (ARRIGUCCI, 1999)
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2011]