Esse
trabalho pretende pôr em questão a relação entre o plano de composição da arte,
conceito deleuziano, e o seu negativo, a não-arte, interpretado como vida. Para
compreender essa relação, que se apresenta como uma interferência ilocalizável
entre arte e vida, o trabalho irá se fundamentar no conceito do trágico,
segundo Deleuze.
This work pretends to question the relationship
between plan of composition of the art, deleuzian concept, and its negative,
the not art, interpreted as life. This
work intends to put in question the relation enters the plan of composition of
the art, deleuziano concept, and its negative, the not-art, interpreted as
life. To understanding this relation, that presents it as a non-localisable
interference between art and life, the work will be base itself in the concept
of the tragic, according to Deleuze.
convivência mais íntima entre as palavras e a vida,
flagrando-as numa mesma dinâmica de arranjos
multiformes.
(PUCHEU, 2007, p. 33)
Aqui
está um desafio. O desafio é desafiar. Des-afiar a navalha. A navalha que
interrompe o fio. Que fio? O desafio: des-a-fio. O desafio é pensar as relações
e como se dão as interferências que
estendem o fio. O que irá tensionar o fio é a arte e a vida. A arte pelo fio da
vida. A vida por um fio na arte. Desafiar a relação
entre a filosofia de Deleuze, a literatura
e a vida, para com esse fio tecer
outros fios: fios de vida e de arte. Entretanto do que é feito o fio? Que é
isto o fio? O fio é trágico? Um fio da tragédia. Lá onde se cruzam os fios: vida-tragédia-arte,
é onde a investigação irá se instalar. Eis o fio que está em oferta para ser
questionado: vida e tragédia e arte. Um único fio.
Para
essa proposta de questinoamento ser iniciada será necessário interrogar
diretamente sobre o ponto de encontro entre a vida e a arte. Sendo
assim, a questão a ser posta irá pretende tratar do trágico, considerando-o
como a zona de envolvimento, o ponto
ilocalizável da relação vida e arte.
Deleuze
distingue a filosofia, a ciência e a arte como planos irredutíveis: plano de
imanência, para a filosofia; plano de referência, para a ciência; e plano de
composição, para a arte. Surge da afirmação da irredutibilidade dos planos uma
ambiguidade: o problema das interferências entre os planos. A despeito de
haver, segundo Deleuze, três tipos de interferências, a interferência que irá
interessar ao nosso questionamento é a interferência ilocalizável. Tanto
a interferência extrínseca como a intrínseca podem ser localizadas em uma
certa relação, apresentando uma forma de contato localizável entre os planos.
Mas, e a interferência ilocalizável?
Como poderá ser investigada? Uma pergunta fundamental: no caso da interferência
ser ilocalizável, isto já de antemão não barraria a possibilidade da
investigação?
A
tradição dos estudos da estética, enquanto disciplina, localizou, sempre, as
relações intrínsecas e extrínsecas do plano de composição da arte. Ora a arte é
interpretada segundo a subordinação ao plano de referência da ciência, ora a
arte vigora subordinada ao plano de imanência da filosofia. Platão, nos
primórdios da reflexão sobre a arte, conseguiu a proeza de mesclar os três
planos: criou uma imagem do pensamento, estabeleceu sobre essa imagem um plano
de referência e subjugou a arte nessa relação (vide A República). Porém, fora
desse sistema, o que há? E as interferências ilocalizáveis da arte?
Tal
interferência corresponde a uma relação do plano com o seu negativo. O plano
que está em questão aqui é o plano de composição da arte. Assim, a investigação
deve perguntar sobre o não-plano da arte, para que possa ser delineada a inter-ferência.
O plano de composição da arte é formado pelos perceptos e afetos, o bloco de sensações. O não-plano da arte,
a não-arte, só poderá ser identificada como vida, já que as outras
interferências estão localizadas sob os domínios da ciência e/ou da filosofia.
O plano de composição da arte em sua relação essencial com a não-arte, os
perceptos e afetos compõem uma linha de fuga, promovem um agenciamento. Este é
justamente o enfrentamento do caos. A arte enfrenta o caos da vida produzindo
agenciamentos: “é isso agenciar: estar no meio, sobre a linha de encontro de um
mundo interior e de um mundo exterior.” (DELEUZE,
1992, p. 66). São os seres de sensação que agenciam a relação entre vida e
arte.
É possível, neste ponto, identificar a interferência entre vida e
arte. No entanto, essa identificação é também, ao mesmo tempo, uma forma da ilocalização.
Determinar a interferência é produzir uma territorialização, trazendo-a
inevitavelmente para os planos, de referência e/ou de imanência, da ciência
e/ou da filosofia. Tarefa já realizada pela história do pensamento ocidental. Mas,
Deleuze ressalta que uma “verdadeira
ruptura [...] deve ser continuamente protegida não apenas contra suas falsas
aparências, mas também contra si mesma, e contra as reterritorializações que a
espreitam.” (Idem, 1998, p. 52). O que cabe ao nosso
momento é compreender o paradoxo: localizar o ilocalizável.
Deleuze faz referência à inter-ferência entre arte e vida,
quando inicia, em seu ensaio Vigésima
segunda série: porcelana e vulcão,
o reconhecimento do ressoar das palavras de Fitzgerald, no seu Crack-up.
“Toda vida é, obviamente, um processo de demolição” (DELEUZE, 1974, p. 157).
Esta é uma característica “irremediável de [toda] obra-prima” (Ibidem). Toda
obra de arte provoca, neste caso a literária, essa reverberação, essa ruptura.
Mais à frente, em seu texto, interroga sobre essa natureza artística:
Como o traçado
silencioso da fissura incorporal na superfície não se tornaria também seu
aprofundamento na espessura de um corpo ruidoso? [...] Se querer é querer o
acontecimento, como não haveríamos de querer também sua plena efetuação em uma
mistura corporal e sob esta vontade trágica que preside a todas as ingestões?
[...] Se existe a fissura na superfície, como evitar que a vida profunda se
transforme em empresa de demolição e se torne tal, “obviamente”? Será possível
manter a insistência da fissura incorporal evitando, ao mesmo tempo, fazê-la
existir, encarná-la na profundidade do corpo? (Ibidem, p. 159-160).
Responde a
todas essas questões que “sim”, pois os dois aspectos diferem em suas
naturezas. Completa sua resposta afirmando que o questionamento sobre evitar
que a fissura se encarne não é justificável: “A fissura continua sendo apenas
uma palavra enquanto o corpo não estiver comprometido” (p. 164). Deleuze está
preocupado, neste ponto, com a distinção entre a efetuação da fissura no corpo
e a efetuação da fissura na superfície incorporal. Ele não faz, em seu ensaio,
apologia ao uso de drogas ou qualquer processo de autodestruição. O que está em
jogo é uma “fissura silenciosa” (Ibidem, p. 158), uma fissura trágica.
Deleuze,
ao analisar a essência do trágico, a partir do estudo da filosofia
nietzscheana, afirma: “O trágico consiste apenas na multiplicidade, na
diversidade da afirmação como tal. O que define o trágico é a alegria do
múltiplo, a alegria plural” (DELEUZE, S.D., p. 28). Neste sentido, o trágico
deve ser tomado como uma afirmação da vida. Afirmar a vida é, também, afirmar o
múltiplo.
Nietzsche
percebeu que o trágico foi concebido historicamente por uma visão dialética e
cristã equivocadas, que “liga o trágico ao negativo, à oposição, à contradição”
(Ibidem, p. 19). Deleuze completa e encerra a questão do pensamento trágico
ponderando o seguinte:
Nunca se compreendeu
o que era o trágico segundo Nietzsche: trágico = alegre. Outra maneira de
enunciar a grande equação: querer = criar. Nunca se compreendeu que o trágico
era positividade pura e múltipla, alegre dinâmica. Trágica é a afirmação:
porque afirma o acaso e, do acaso, a necessidade; porque afirma o devir e, do
devir, o ser; porque afirma o múltiplo e, do múltiplo, o uno. Trágico é o lance
de dados. Tudo o resto é niilismo, pathos dialético e cristão, caricatura do trágico,
comédia da má consciência. (Ibidem, p. 57).
A afirmação
do trágico é o devir. O trágico afirma o devir. A afirmação do devir na arte é
feita pelo afeto. Os afetos, segundo Deleuze são os “devires não
humanos do homem” (Idem, 1992, p. 220). Isto significa que o homem devem outro, que não o humano. Neste
sentido, o homem pode devir vento, água, fogo, devir qualquer outro que não
seja humano. Assim, o devir produz uma desterritorialização, e é este o caráter
trágico da relação entre arte e vida. A desterritorialização enfraquece o
reinado da arte em oposição à vida, promove o encontro entre vida e arte, onde
uma e outra se tornam indiscerníveis.
Foi
afirmado que a relação entre arte e vida é ilocalizável, a relação da arte com
a não-arte desterritorializa no plano de composição,
produz agenciamento. Mas, localizar a interferência não estabelece, não
instaura um empenho de reterritorialização? A verdade é que a vida está sempre
presente na arte:
Vida: um nome para o que não há de fora. Todos os
nomes estão na vida, mesmo os de fora e os ainda não
engendrados.
(PUCHEU, 2007, p. 36)
Segundo
Alberto Pucheu, a “literatura é uma serva das intensidades de vida,
tornando-se, assim, um caminho vital intensivo.” (Idem, 2004, p. 224).
É
possível concluir, então, que segundo o desafio proposto à/por Deleuze, de
pensar a interferência ilocalizável da arte, a interferência só poderá ser
identificada e localizada, através da vida. Mas, a vida na arte não poderá
deixar de devir, processando a demolição, agenciando a experiência trágica.
Desta forma, a arte e o trágico são o mesmo. Assim como a vida e o trágico.
Melhor identificar o ponto de interferência, então, no trágico. O trágico será
o ponto de interferência ilocalizável, que localiza a interferência multíplice
simultânea entre arte e vida.
REFERÊNCIAS
DELEUZE,
Gilles. O trágico. In: Nietzsche e a filosofia. Tradução
António M. Magalhães. Rés Editora, [S.D.].
DELEUZE,
Gilles.O que é a filosofia. Tradução Bento Prado Jr. E Alberto Alonso
Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DELEUZE,
Gilles. Da superioridade da literatura anglo-americana. In: Diálogos.
Tradução Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles. Vigésima segunda série: porcelana e vulcão. In: Lógica
do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
FITZGERALD,
F. Scott. Crack-up. Porto Alegre: L&PM, 2007.
PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve?. In:
CASTRO, Manuel Antônio de. A construção
poética do real. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
PUCHEU, Alberto. Escritos de indiscernibilidade.
Disponível no endereço
<http://www.albertopucheu.com.br/pdf/livros/indiscernibilidade.pdf>.
Acesso em 01 dezembro de 2007.
__________ [1]
[1] Fábio Galera é licenciado em Letras (UNESA). Graduando em Filosofia (UFRJ). Especialista em Literatura Infanto-juvenil (UNESA). Mestrando (CAPES) do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Poética - UFRJ). Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira da Faculdade Souza Marques. E-mail: fabiogalera@ig.com.br
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2011]