Experiência fílmica e (a/re)presentação de mundos possíveis
Rosane Meire Vieira de Jesus
Resumo
Minhas atuais inquietações e elucubrações em relação à aproximação teórica entre experiência, comunicação e formação traduzem o cerne da discussão para a construção conceitual da expressão a-con-tecer da experiência fílmica. Neste artigo, portanto, discuto o a-con-tecer da experiência fílmica no sentido de interrogar-me em relação ao movimento existencial da experiência estética com/ a partir do filme. Para tanto inicio (re)construindo o conceito de experiência estética, ou melhor, experiência da arte, sob o veio da hermenêutica universal ou filosófica de Hans-Georg Gadamer (2005; 2004).
My current preoccupation on the a theoretical aproximation between experience, communication and training reflect the heart of the discussion for the conceptual construction of the expression happening of the film experience. In this article, therefore, I discuss the happening of the film experience to question the existential movement of the aesthetics experience with/ from the movie. For both I (re)build the concept of aesthetics experience, or rather, art experience, of the universal or philosophical hermeneutics of Hans-Georg Gadamer (2005; 2004).
Key-words: Aesthetics experience; Film experience; Film language; happening.
Introdução
A
linguagem fílmica constrói uma mise en scène que aproxima o espectador
da realidade ao propiciar o registro e a revelação do mundo visível,como também o afasta do real ao se perder na
sucessão de imagens, cores, luzes esonoridades.
Trata-se de uma (re)apresentação complexa da realidade, a qual culmina num“saber raro”, distinto do racionalismo
moderno que, segundo Michel Maffesoli (1998), produz a “esquizofrenização do
pensamento”. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a tensão entre a
representação e a distorção na obra fílmica trilha o “caminho incerto do
imaginário”, possibilitando ao espectador um
(...) saber que, ao mesmo tempo,
revela e oculta a própria coisa descrita por ele; um saber que encerra, para os
espíritos finos, verdades múltiplas sob os arabescos das metáforas; um saber
que deixa a cada um o cuidado de desvelar, isto é, de compreender por si mesmo
e para si mesmo o que convém descobrir; um saber, de certa forma, iniciático
(idem, p. 21).
A
obra fílmica encanta com o jogo entre a objetividade das imagens e a
subjetividade daspróprias lembranças
que, em princípio, pode parecer antagônico. No entanto tal ambigüidadenão gera incompatibilidades, já que “as
imagens fluem entre si, condensam-se e combinam-se em cada experiência mental
do indivíduo, podendo parecer do exterior inadequadas ou mesmo incoerentes”
(BARTLETT apud LEITE, 1999, p. 43). Quais são as armadilhas da linguagem
fílmica que tanto fascinam os espactadores? O fascínio é resultado de uma
aproximação ou afastamento doreal? Ou é
da relação dialógica entre registro e constructo que a-con-tece a experiência
fílmica? Quais as garantias para que as experiências fílmicas aconteçam? É
regra acontecer? Ou exceção?
Para
compreender essa situação problemática, no primeiro momento, discuto
experiência estética sob o veio da hermenêutica universal ou filosófica de
Hans-Georg Gadamer (1900-2002) a partir das suas principais obras, Verdade e Método I e II (2005; 2004).
Emergindo das tradições continentais da hermenêutica e da fenomenologia, sua
obra enfatiza a filosofia como atividade prática e opõe-se ao fluxo geral do
pensamento moderno.
Já
na segunda parte, passo a compreender o a-con-tecer da experiência fílmica.
Para tanto analiso interpretativamente a experiência fílmica que pode ser
entendida como uma vivência com/ a partir do filme, compreendendo vivência
segundo Gadamer (2005): algo que se diferencia do restante do decurso da vida;
“o que vale como uma vivência não é mais algo que flui e se esvai na torrente
da vida da consciência, mas é visto como unidade e, com isso, ganha uma nova
maneira de ser uno” (idem, p. 112). Logo a experiência estética representa a
forma de ser da própria vivência.
E,
finalmente, inicio uma discussão que ainda é incipiente sobre o a-con-tecer, um
termo cunhado por Maria Inez Carvalho (2001), a partir dos estudos
prigogitianos da Teoria das Possibilidades/ atualizações na vertente de que o
mundo funciona como um jogo em que se vão precipitando (atualizando/ emergindo)
novas configurações das diversas possibilidades postas. O a-con-tecer facilita
a compreensão de um processo formativo menos teleológico e mais estético.
A experiência estética (da arte)
gadameriana
Pensando
na pré-compreensão heideggeriana, Gadamer (2005) afirma que a interpretação
está situada dentro do horizonte[1] mútuo do intérprete e da coisa a ser interpretada e que só é possível com os
pré-entendimentos. Estes são baseados na tradição, ressignificada a cada nova
interrogação, desestruturando paradigmas já (pre)estabelecidos, que insistem em
simplificar o vivido. Esse movimento descreve o momento estrutural ontológico
da compreensão do círculo existencial-hermenêutico:
Não é objetivo nem subjetivo,
descreve, porém, a compreensão como um jogo no qual se dá o intercâmbio entre o
movimento da tradição e o movimento do intérprete. A antecipação de sentido,
que guia a nossa compreensão de um texto, não é um ato da subjetividade, já que
se determina a partir da comunhão que nos une com a tradição. Mas em nossa
relação com a tradição essa comunhão é concebida como um processo em contínua
formação (idem, p. 389).
A
verdade é rejeitada como correspondência ou representação; a verdade é
experiência, entendendo-a não como algo acumulado, repetível, mas como as
qualidades do não-repetível, do único. A experiência hermenêutica (Erlebnis) distingue-se
da pura experiência (Erfahrung), pois ela dá posse ao ser que, para revelar a
verdade, através do encontro entre o familiar e o desconhecido, permite-se
frustrar suas expectativas e confrontar-se com o inesperado, a novidade. A
experiência hermenêutica não ensina nada além dos insights na falibilidade das possibilidades humanas e suas
limitações essenciais. Abertura à experiência é o experienciar da verdade, o
entendimento de si para si (LAWN, 2007).
Nesse
sentido a arte é uma experiência da verdade, que foi adiada quando se cria a
Estética no século XVIII por Baungarten e se subjetiva demais a existência.
Antes de se entender como subjetividades, precisa se entender a si como
identidades construídas cultural e socialmente que se conectam nos “circuitos
fechados da vida histórica”. Ou seja, somos enraizados num ambiente cultural
que é construído num tempo. Tempo que se relaciona com outros tempos. Esse
ambiente é a tradição. E à medida que adquirimos a linguagem, entramos num
horizonte, perspectiva de mundo, ao qual iremos reconstruindo no decorrer da
nossa vida. E como a vida é finita, tal finitude expõe a impossibilidade de
romper completamente com esse horizonte, negando a idéia iluminista do eu
autônomo, auto-reflexivo e emancipador. Quando entramos em contato com o
inesperado, a novidade, de certa forma nossos preconceitos são confrontados e
percebemos o quão incrustados a uma tradição, a um horizonte dessa tradição
estamos. Vivemos numa relação dialógica entre revelação e limite.
A
verdade só existe no diálogo ou conversação dentro e com a tradição. O que nos
leva a pensar que verdade é diálogo. Diálogo genuíno, sem a condução de um dos
participantes, já que vai além das opiniões subjetivas e seguem direções
imprevisíveis; sem inteireza, portanto. A única consciência é a tentativa de
levantar as suas referências, desafiando-as e surpreendendo-as. Um diálogo
produtivo nos força a ver as coisas de maneira diferente e sob novas
perspectivas.
Isso
nos leva à lógica da pergunta e da resposta gadameriana que é desenhada para
abrir linhas de questionamento, facilitando a compreensão de algo. Cabe,
portanto, questionar o texto e o contexto para buscar incessantemente o
processo interpretativo implicado. É preciso saber quais as questões de uma
determinada época o texto tenta responder e que questões o texto coloca para o
leitor responder. O horizonte do texto apresenta questões ao intérprete e o
intérprete define as questões em relação àquilo que foi levantado no diálogo.
Uma
pessoa que quer entender precisa questionar aquilo que está além do que foi
dito. Ela precisa entender como uma resposta a uma questão. Se voltarmos para
aquilo que estava por trás do que foi dito, então invariavelmente levantaríamos
questões além daquilo que foi dito. Nós entendemos o sentido do texto somente
através da aquisição do horizonte da questão... (GADAMER, 2005, p. 370).
A
verdade não advém de um método, mas é o pano de fundo que se estabelece no
diálogo. Os atos de interpretação são dialógicos dentro da tradição. Portanto
Gadamer discute a experiência da arte como um acesso à verdade incompleta e
vulnerável às circunstâncias imediatas. O intérprete da obra não é um sujeito
conhecedor dominando um objeto, mas um experimentador da obra que visita os
preconceitos ou hábitos passados através da tradição, confrontando o
desconhecido com o conhecido. E o desconhecido não é dominado através da
classificação, da generalização, de acordo com uma lógica matemática e
sistematizadora. Ele é experienciado disruptivamente, já que nos surpreende.
O a-con-tecer da experiência fílmica
A
linguagem fílmica constrói uma (re/a)presentação complexa da realidade.
Etimologicamente, presença vêm do latim praesens
e significa “que assiste pessoalmente” (CUNHA, 2007, p. 633). Ao ser presença,
a linguagem fílmica presentifica um mundo distinto daquele anterior à invenção
do cinematógrafo, já que (re)configura a percepção seja a partir da “exposição
de um tempo cíclico, da representação de papéis, da captação de algo através da
câmera, da montagem das imagens” (SILVA, 1996, p. 69); seja pela sua relação
com a realidade.
O cinema, pela pura aceleração
mecânica, transportou-nos do mundo das seqüências e dos encadeamentos para o
mundo das estruturas e das configurações criativas. A mensagem do cinema
enquanto meio é a mensagem da transição da sucessão linear [ininterrupta] para
a configuração (MCLUHAN, 1982, p. 26-27).
A
presença da linguagem cinematográfica instaura um outro olhar, uma forma de
serelacionar com o mundo através de uma
variedade de planos, enquadramentos e movimentos. Naturalizou-se, então, uma
linguagem que fomenta um modo de ver artificial. O olhar ciclópico ou ciclópeo
é um termo que deriva do grego “ky’klops –opos”, vem de ciclope “(Mit.) gigante
com um olho só na testa” (CUNHA, 2007, p. 181). Pode-se fazer alusão à câmera
filmadora – uma lente desbravando/ criando um mundo cheio de “espaços vazios”.
O espectador, que é conduzido de uma cena a outra pela montagem, tenta dar sentido ao que é visto entre
cortes, preenchendo vazios. No entanto o espectador, diferentemente do que
previa Ingarden (1979) nos seus estudos estéticos, não é um seguidor de
instruções que deve concretizar “corretamente” as indeterminações de um texto
como uma estrutura potencial. O que existe é a comunicação efetiva entre o
espectador e o texto fílmico: “o leitor deve construir o texto de modo a
torná-lo internamente coerente” (EAGLETON, 1997, p. 111).
O
filme presentifica um mundo não posto, definido, mas resultado dos elementos
que aparecem na tela e do que não aparece. As incompletudes são determinantes
no processo receptivo, não é o texto objetivo e nem a experiência subjetiva,
mas a interação entre ambos (ISER, 1996). O espectador torna-se co-produtor do
ato de criação. “São as indeterminações que permitem ao texto ‘comunicar-se’
com o leitor, induzindo-o a tomar parte na produção e compreensão da intenção
da obra”(ZILBERMAN, 2001, p. 51).
Os
estudos da estética da recepção, criados por Jauss (1994), tiveram como
referência a literatura, entretanto o cinema acirra o envolvimento do
espectador, estimulando o espectador a uma participação nunca dantes imaginado.
O movimento contribui muito para isso, pois oferece corporalidade aos objetos.
“No cinema, a impressão de realidade é também a realidade da impressão, a
presença real do movimento” (METZ, 1972, p. 22).
Se
já é um fato tradicional a celebração do ‘realismo’ da imagem fotográfica, tal
celebração é muito mais intensa no caso do cinema, dado o desenvolvimento
temporal da imagem, capaz de reproduzir, não só mais uma propriedade do mundo
visível, mas justamente uma propriedade essencial à sua natureza - o movimento
(XAVIER, 1984, p. 12).
A
imagem em movimento nos faz pensar em outra dimensão da linguagem fílmica: a
apresentação do real concreto. Etimologicamente, apresentação e presença têm o
mesmo significado - “que assiste pessoalmente” (CUNHA, 2007, p. 633). O
elemento prefixal a- “não altera o significado do vocábulo” apresentação
(ibidem, p. 1). Entretanto a única diferença em relação à presença é que, em
apresentação, há também o sufixo nominal –ação, derivado do latim “-atio –onis, que forma substantivos abstratos deverbais, com a noção
básica de ‘ação, ato’, deduzidos dos particípios em –atus (>-ADO) da primeira conjugação: acetilação, capinação,
dominação” (ibidem, p. 7-8).
Apresentação
é o ato de apresentar, mostrar, exibir, expor pessoalmente, isto é, estar
diante de algo. A linguagem fílmica, ao ser apresentação, propicia ao
espectador o registro e a revelação do mundo visível. O cinema conquista de
imediato uma credibilidade seja para filmes realistas ou fantásticos,
documentários ou filmes de ficção, já que toma posse de consideráveis
fragmentos inalterados da realidade; interpreta-os, mas a interpretação
permanece fotográfica. “Esta incorporação do que é registrado,
independentemente da intenção artística que presidiu ao registro, acarreta
evidentemente o problema do excesso ou impertinência do registrado” (MONTEIRO,
2005, p. 4). Há, com isso, uma espécie de ativação da credulidade.
Pressupõe-se que se trata de uma situação verdadeira e o espectador é instado a
processá-la como tal e é estimulado a ter curiosidade. A psicanálise chama de
epistemofilia “o impulso inato da criança para conhecer as verdades dos fatos
que estão ao seu redor e para os quais não encontra explicações” (CARAMURU,
2008, p. 46). Tal termo origina-se do grego epistéme (ciência)e phílos (amigo).
Então o espectador vivencia a
epistefilia ou epistemofilia que é o prazer de conhecer, alimentado pela
persuasão de argumentos sobre o mundo.
Já
representação é formada por represent-ação. O radical vem do latim repraesentare “ser a imagem ou a
reprodução de” (ibidem, p. 677). E representação não é, como pode parecer ao
senso comum, tornar a apresentar, mas ato ou efeito de representar a imagem de,
de desempenhar papéis em teatro, idéia que concebemos do mundo ou de uma coisa,
reprodução. A linguagem fílmica, ao representar, afasta o espectador do real
concreto para fazê-lo se perder na mise
en scène própria de um constructo
artístico. A partir de um processo perceptivo e afetivo de “participação”.
Apesar dos índices de realidade disponíveis no filme, o espetáculo é irreal,
pois se desenvolve em outro mundo: o espaço e o tempo da diegese – o “representado” próprio a cada arte, tempo e
espaço que decorrem ou existem dentro da dimensão ficcional de uma narrativa,
com suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor. Diegese é um conceito grego (diegesis) que foi difundido pelos
estruturalistas franceses e se relaciona com a mimese aristotélica, já que
Aristóteles (1966) compreende mimeses[2] como imitação que extrapola o objeto-modelo e o objeto construído, pois contém
ambos, ao mesmo tempo. Ou seja, a mimeses provoca no espectador o
reconhecimento daquilo que é verossímil e necessário ao texto. E toda
construção mimética proporciona uma catarse[3] em grande ou pequena medida – respectivamente, a tragédia e a comédia. Segundo
Aristóteles, para suscitar a catarse, é preciso que o herói passe da graça para
a desgraça por uma ação ou escolha própria mal feita.
Trabalhando com os conceitos de diegese, mimeses e
catarse, entende-se que a organização da narrativa fílmica demanda uma suspensão da incredulidade ao representar o mundo real
concreto. Sabe-se que se trata de um constructo
artístico, mas se dispõe a creditar nela - mergulho diegético, o prazer de
se perder naquilo que se vê.
O
filme, dessa forma, traz índices que apresentam um mundo real concreto e,
simultaneamente, representam o universo da diegese,
sem, no entanto, confundir as imagens com a realidade. É um jogo interpretativo
no qual o filme “consiste em colocar muitos índices de realidade em imagens que, embora assim enriquecidas,
não deixam de ser percebidas como imagens [...] e, assim, atualizar o
imaginário a um grau nunca dantes alcançado” (METZ, 1972, p. 28). Monteiro
(2005, p. 38) ratifica:
No
filme, dispõe-se conscientemente para a ilusão. Isto explica a natureza
profundamente onírica do cinema, assim como a sua natureza absoluta e
inevitavelmente concreta, o seu estatuto de objeto. O cinema, como sua
especificidade e sua força, é justamente esse jogo constante, inerente ao
médium, entre estar dentro e saber que se está fora, entre aparência e
realidade. Assistir a um filme é uma forma de estar-no-mundo, mas também
envolve um fenômeno a que podemos chamar estar-no-filme.
Não
há uma dicotomia entre estar-no-mundo e estar-no-filme, pois este último põe
entre parênteses o primeiro que atualiza o segundo. Com inspiração
heideggeriana (HEIDEGGER, 2006), pode-se dizer que, desse espiral hermenêutico,
emerge o modo como o ser-aí trata das coisas em seu mundo – a pré-estrutura da
compreensão. Esta é evidenciada pela experiência fílmica e cada pre-sença
singular vai (des)velando/ interpretando referências e comprendendo-se no e com
o mundo, descobrindo suas possibilidades de atuação no mundo e configurando,
dessa forma, sua existência.
Conclusão
Essas
dimensões da linguagem fílmica – presença de um mundo cheio de vazios,
apresentação do mundo sociohistórico, estimulada pela epistefilia, e
representação do verossímil, estimulada pelo mergulho diegético – estimulam que
o espectador permita-se reagir ativamente às imagens, atribuindo-lhes um
sentido que é fruto, em última instância, das suas experiências e expectativas.
A autocompreensão é avaliada e posta em risco na experiência fílmica.
Como
é uma vivência singular e particular, não há garantias se o filme irá provocar
ou não uma experiência. Baseando-se em Palmer (1969), podemos dizer que um
filme fala e, ao fazê-lo, constrói um mundo. E, se esse falar não for
compreendido pelo espectador, não há possibilidade de emergir um mundo que
dialogue com o do espectador. As pistas construídas pelo cineasta na narrativa
fílmica não são vistas nem ouvidas, ou seja, as perguntas colocadas pela
recepção não são respondidas, seja pelas pistas estarem fora do horizonte de
mundo do espectador, seja por outras questões para além do filme, como a
disponibilidade afetiva do mesmo, que reflete na intencionalidade da
compreensão.
O
encontro com um filme não se dá num contexto exterior ao próprio horizonte de
experiências e expectativas do espectador. “Há uma razão pela qual se voltou
para este texto e não para outro qualquer e, assim, aborda o filme
colocando-lhe perguntas, e não em branco” (PALMER, 1969, p. 140), já que toda
compreensão opera sempre no interior de um conjunto de relações já
interpretadas, num todo relacional em que o ser está mergulhado.
A
expressão a-con-tecer da experiência fílmica é utilizada para dar conta da
interação entre obra e espectador, entre o leitor implícito[4]e o leitor real. Nesse processo interativo, o espectador vivencia a verdade no
momento em que a política de sentido é posta em jogo e ilumina-se, atualizando
diretamente o mundo/ a nossa situação existencial e, assim, revelando as
potencialidades concretas do ser.
Como
deriva do verbo latino contingescere,
que tem a mesma raiz de contingência, a-con-tecer
significa um fato imprevisto,
ocorrência por acaso ou por acidente, conforme se pode ler em Ferreira (1999) e
em Cunha (2007, p. 11) - “realizar-se inopinadamente, suceder, sobrevir”. Logo,
implicada neste dinâmico jogo conceitual do a-con-tecer, a experiência fílmica
não é vista por causas e efeitos diretos, mas está mergulhada num campo de forças
que são/ estão dispostas para precipitar um processo formativo ao
(re/a)presentificar um mundo.
O a-con-tecer da experiência fílmica
abarca três atividades primordiais, que, embora distintas, relacionam-se entre
si: a poesis, a epistefilia e o mergulho diegético. A poesis compreende o
prazer do espectador ao sentir-se co-autor da obra fílmica que presentifica um mundo cheio de
vazios. A epistefilia é o prazer advindo de uma ampliação racional
de horizonte de mundo, proporcionada pela dimensão da linguagem fílmica de
apresentar o registro e a
revelação do mundo visível diretamente relacionado ao sociohistórico. E o
mergulho diegético mobiliza o prazer de uma ampliação sensível de horizonte de
mundo, possível pela dimensão dimensão da linguagem fílmica de representar uma mise
en scène própria de
um constructo artístico.
Logo
a experiência fílmica pode dar acesso às verdades fundamentais sobre o mundo,
não estando restringida a um sentimento como alguma variedade da experiência
pessoal. Gadamer reivindica verdade pela arte, percebendo a capacidade da mesma
em revelar ou esclarecer pré-compreensões, emergindo a (des/re)construção
inventiva do ser. Ao tornar-se experiência fílmica, o filme altera aquele que o
experimenta, participando do processo formativo ao atualizar seu horizonte de
mundo. O encontro com os horizontes de mundo (filme – espectador) ilumina o
próprio horizonte e leva à autocompreensão, num momento de revelação
ontológica, através da linguagem.
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[1] Entendo horizonte como “o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode
ser visto a partir de um determinado ponto” (GADAMER, 2005, p. 399). Devido à
mobilidade histórica da existência humana, não há horizonte fechado e
definitivo. “O horizonte é, antes, algo no qual trilhamos nosso caminho e que
conosco faz o caminho” (ibidem, p. 402).
[2] Esse termo vem do grego “mímesis ‘imitação’,
de miméomai ‘eu imito’” (CUNHA, 2007,
p. 521).
[3] Catarse tem origem grega (kátharsis)
e significa purificação, purgação, limpeza, “efeito salutar provocado pela conscientização
de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida”
(CUNHA, 2007, p. 165).
[4] Entendido como uma estrutura textual que oferece “pistas” sobre a condução da
leitura. Tal leitor só existe na medida em que o texto determina sua existência
e as experiências processadas, no ato da leitura, são transferências das
estruturas imanentes ao texto (ISER, 1996).
__________
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação da Faculdade de Educação/ UFBA e professora do Curso de Comunicação da UNEF/FAN.
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2011]