Autoria compartilhada: J. D.
Salinger e Buddy Glass
Clarisse Lyra Simões
J. D. Salinger, esquivo autor
nova-iorquino, morto em janeiro de 2010, foi um dos mais ilustres componentes
da galeria do não categoria criada
pelo espanhol Enrique Vila-Matas (2004) para aqueles escritores que possuem uma
pulsão pela negatividade que os leva, por tempo determinado ou indefinido, a
não escrever ou, pelo menos, a não publicar.
Salinger lançou seu primeiro livro em
1951, o romance O Apanhador no Campo de
Centeio, e até o início da década de 60 publicou em livros contos que já
haviam saído de forma avulsa na revista The
New Yorker: Nove Estórias em
1953, Franny & Zooey em 1961 e,
em 1963, Pra Cima com a Viga, Moçada
e Seymour, uma Introdução. Depois
disso, só voltou a publicar uma única vez: em 1965 saiu o longo conto Hapworth 16, 1924, que não tem tradução
para o português. A esta altura, Salinger iniciava uma reclusão que se tornaria
absoluta, encerrado em sua casa na pequena cidade de Cornish, aonde uma legião
de fãs e repórteres se dirigiu sem no entanto conseguir vislumbrá-lo.
Neste ensaio, pretendo tratar do mais
freqüente narrador de Salinger, o senhor Buddy Glass. Tentarei caracterizá-lo
para, a partir de então, discutir de que forma o autor, através de estratégias
narrativas, dota sua ficção de elementos auto-referenciais que revelam para o
leitor o caráter essencialmente lúdico da literatura.
Para começar, devo dizer que são três
os contos em que Buddy
se apresenta como narrador: Zooey, Pra Cima com a Viga, Moçada e Seymour,uma introdução.
Zooey é o relato de uma manhã de
segunda-feira, em 1955, no apartamento da família Glass: Franny, a caçula,
universitária de 20 anos, está passando por uma crise nervosa. Deitada no divã
da sala de estar, recusa-se a comer. Contracenam com ela Zooey, o penúltimo da
família, jovem e talentoso ator, de estilo arrogante e fanfarrão, e Bessie, a
mãe, atriz aposentada do teatro de variedades. O narrador, Buddy, o segundo
filho de um total de sete, é escritor e está algumas centenas de quilômetros
distante da cena narrada, mas constrói o seu relato a partir das descrições e
versões que lhe oferecem os envolvidos na trama.
Na introdução do conto, antes de
partir para os fatos em si, ele comenta: [...] o que pretendo oferecer não é
realmente uma estória; é, antes, uma espécie de seqüência cinematográfica de um
filme de amadores, realizado em família, só que, em vez de imagens, tem prosa
(SALINGER, 1961, p. 62).
Com efeito, essa declaração reflete verdadeiramente
a perspectiva adotada por Buddy ao narrar. Sua prosa é em demasia
cinematográfica: as descrições de cenários e objetos são objetivas e
minuciosas, revelando detalhes que permitem ao leitor visualizá-los com grande
clareza; os diálogos são abundantes e intermediados pela descrição precisa dos
gestos e das expressões dos interlocutores; predominam nas cenas os personagens
esses personagens intelectualizados de Salinger, irônicos e levemente
problemáticos.
Assim como o expectador de cinema, o
leitor não chega a adentrar a consciência desses personagens; Buddy limita-se a
descrever as ações dos sujeitos, e seus comentários mais expansivos pautam-se
no que se pode deduzir destes pequenos atos e são, quase sempre, apresentados
como uma possibilidade, um talvez. Digressões quase não há; a ação é
concentrada e exaustivamente detalhada. Buddy prefere não adjetivar seus
personagens ou o estado de espírito deles: deixa que aos poucos eles se revelem,
através de suas falas e atos. Não se trata isto de um poder de sugestão, mas de
uma capacidade de deixar à mostra, de permitir que os personagens falem por si
mesmos e que as situações dêem as medidas. Essa perspectiva narrativa é
encontrada igualmente nos outros textos narrados por Buddy Glass. Ou, ainda: é
a perspectiva geralmente adotada por J. D. Salinger.
É mais fácil caracterizar as escolhas
narrativas de Buddy e, portanto, o narrador, do que o personagem. Em primeiro
lugar, ele quase nunca fala sobre si mesmo. Na introdução de Zooey, lemos: A
história começará por aquela perene e excitante ignomínia que é a apresentação
formal do autor. A que eu tenho em mente não só é palavrosa e de uma veemência
que excede os meus sonhos mais delirantes como, ainda por cima, é
torturantemente pessoal. Apesar de tal afirmativa, o suposto autor não chega
de fato a se apresentar, a não ser indiretamente.
Seu estilo é inconfundível, mas
qualquer definição a seu respeito parece imprecisa. Percebo que ele próprio é
afeito às indefinições: ao tentar precisar Franny, sua irmã, diz que ela
adoraria ser descrita como um tipo lânguido e sofisticado. Sua mãe, por outro
lado, é apresentada como uma esbelta e cintilante criadinha de comédia
francesa. De si mesmo diz que é um homem normal e de coração frágil. (Vê-se
que a ironia é uma de suas principais características). Sobre sua linguagem,
afirma que a família Glass fala uma espécie de linguagem esotérica própria,
uma espécie de geometria semântica em que a distância mais curta entre dois
pontos é um círculo mais ou menos completo.
Pra Cima com a Viga, Moçada é um
relato de Buddy sobre o dia do casamento de Seymour, o primogênito, herói da
família, poeta e espécie de profeta sob cuja influência todos os irmãos viveram
e pela qual foram, em maior ou menor medida, atormentados. O irmão mais velho é
tema central também em Seymour, uma Introdução. Neste conto, Buddy tenta uma
espécie de crítica literária da obra que Seymour deixou inédita ao morrer, aos
trinta e oito anos. Essa crítica parece, na verdade, um pretexto para que
Buddy, em uma espécie de diário, carregando no estilo entre ranzinza e
bem-humorado, realize uma homenagem ao irmão, fale sobre sua família e,
consequentemente, acabe revelando algo sobre si mesmo.
Foi, por sinal, uma passagem desse
relato (em tradução de Alberto Alexandre Martins) que suscitou as reflexões
deste ensaio. Peço licença para citá-la:
A esta altura, não me
parece mero capricho dizer que já escrevi sobre o meu irmão antes. Pensando
nisso, poderia até admitir com um pouco de bom humor que raramente houve uma
vez em que eu não tenha escrito a seu respeito. [...] Algumas pessoas não amigos íntimos perguntaram-me se
não havia um bocado de Seymour no jovem protagonista do único romance que
publiquei. [...] Negar isso, descobri, me deixa em pedaços, mas direi que
ninguém que conheceu o meu irmão perguntou-me ou disse-me qualquer coisa do
gênero pelo que fico grato e, de certo modo, bastante impressionado, já que
boa parte dos meus personagens principais fala manhattanês fluente e idiomaticamente
[...]. (SALINGER, 1983, p. 54)
Este é o início de uma declaração que
traz algumas referências, claras ou obscuras, à obra pregressa de J. D.
Salinger. Em o jovem protagonista do único romance que publiquei, por
exemplo, estaria Buddy referindo-se ao nosso velho conhecido Holden Caulfield, narrador
de O Apanhador no campo de centeio, exemplo supremo de falante fluente de
manhattanês? É possível que, nesta afirmação, Salinger, numa espécie de jogo a
posteriori, esteja atribuindo ficticiamente a Buddy Glass a invenção e narração
deste romance?
Vejamos. Analisando a psicologia de
Holden Caulfield, percebemos como um de seus traços fundamentais a perda de um
irmão mais novo, que era o sujeito mais inteligente e generoso que ele jamais
conhecera, cuja falta ele sente de maneira muito profunda. Pode-se dizer, de
certa maneira, que essa é também a dor de Buddy, que perdeu Seymour. Trata-se efetivamente
de um mesmo paradigma. Da mesma forma, pode-se dizer que são correspondentes as
psicologias de Allie e Seymour. Eles têm qualquer coisa de iluminados, de
escolhidos que a morte prematura tolhe do seu destino, mas que, não obstante,
imortalizam-se na memória desses seus irmãos.
Essa semelhança psicológica entre
Holden e Buddy, mais do que entre Holden e Seymour (como teriam apontado alguns
conhecidos do narrador), poderia justificar a atribuição de O Apanhador no
campo de centeio à pena de Buddy Glass se é que é a este livro que a
declaração faz referência. De qualquer forma, a relação é possível e, de todo
modo, nenhuma leitura é definitiva, ainda mais quando estamos lidando com um
narrador que é afeito, como mais uma vez podemos perceber, às indefinições. Na
seqüência da declaração citada, no entanto, Buddy é bem específico.
O que posso e devo
afirmar é que escrevi e publiquei dois contos que eram para ser inegavelmente
sobre Seymour. O mais recente dos dois [...] era um relato pormenorizado do dia
do seu casamento, em 1942. [...] mas Seymour mesmo [...] não fazia sua aparição
física em lugar algum. Por outro lado, no conto anterior [...], ele não só
aparecia em carne e osso como também andava, falava, dava um mergulho no mar e,
no último parágrafo, disparava um revólver no cérebro. Mesmo assim, vários
membros de minha imediata, se bem que espalhada família, [...] gentilmente
apontaram [...] que o jovem, o Seymour, que andava e falava naquele conto
[...], não era Seymour de maneira alguma, mas estranhamente alguém que se
assemelhava muito profundamente vamos logo com isto a mim mesmo. (SALINGER,
1983, p. 55)
O primeiro conto a que Buddy se refere
é, indubitavelmente, Pra cima com a viga, moçada. E o segundo, Um dia ideal
para os peixes-bananas, o primeiro da coletânea Nove estórias.
Esse jogo de Salinger com suas
próprias referências mesmo não nomeando, ele caracteriza os textos de modo
que podemos reconhecê-los entre suas produções obriga o leitor, se for este
curioso, a voltar a suas obras anteriores ou, pelo menos, a lembrar-se e,
então, pensar sobre elas. Essa volta se dá sob uma nova perspectiva. Amplas
possibilidades de leitura se abrem a partir desta declaração.
Em Um dia ideal para os
peixes-bananas, por exemplo, o fato de o narrador do conto ser, talvez, irmão
de Seymour, pode mudar completamente sua interpretação. Se o leitor tem um
contato cronológico com a obra de Salinger, ao ler pela primeira vez o relato,
ele será informado sobre o último dia de vida de Seymour Glass, por uma voz em
terceira pessoa, onisciente, totalmente confiável. Uma voz onipresente que
narra os momentos que precederam o suicídio de Seymour com absoluta
objetividade, sem titubear diante de um gesto sequer.
Ao deparar-se com a prescrita
declaração, entretanto, o leitor é obrigado a voltar sobre o conto, e agora sua
impressão é outra. O narrador do conto não é onisciente, tampouco esteve
presente no momento da ação. Logo, o relato deste dia é fruto da imaginação de
Buddy Glass, que tentou intuir cada atitude anterior ao suicídio de seu irmão. Portanto,
este narrador passa a ser um narrador não-confiável. A objetividade na
descrição das cenas passa a ser fruto de uma profunda subjetividade de Buddy
Glass, que tentou recriar imaginativamente e com base no seu conhecimento do
temperamento e personalidade do irmão , movido por esforços de ordem emocional,
pessoal, este momento tão crucial no destino da família Glass que não foi,
embora todos insistam em dizer o contrário, bem assimilado por sua mãe e
irmãos.
Mas não apenas a perspectiva narrativa
muda. Ao deixar de confiar inteiramente no narrador, o leitor passa a
desconfiar também dos personagens que ali se encontram. Até que medida é
possível acreditar no Seymour de Buddy? Ele próprio afirma que familiares seus
reconheceram naquele youngman muito mais
dele mesmo do que de Seymour propriamente dito. E se Buddy não conseguiu,
segundo ele próprio, um retrato fiel de seu irmão, criatura a quem mais
conhecia na Terra, o que dizer do retrato da frivolidade de Muriel (esposa de
Seymour) que aparece nas primeiras páginas do conto? Quão influenciada por suas
inclinações pessoais, pela visão negativa de sua família em relação ao
casamento do primogênito, não terá sido a psicologia de Muriel neste conto? (E
mais ainda a de sua mãe)?
Ao reler o relato, o leitor pode
perceber o quanto este Seymour é dotado de ternura e como os momentos finais da
ação, que antecedem o suicídio, são marcados pela total ausência de emoção provável
esforço de Buddy em poupar seu irmão do melodrama e, em última instância,
estratégia para lhe salvaguardar do sentimentalismo. Ao reler o conto, neste
momento o leitor percebe a fragilidade da objetividade e como tudo nesse texto
é, ficcionalmente, fruto de uma subjetividade. Ele percebe como a realidade aí
expressa se apresenta totalmente ligada a uma consciência inalienável que cria
e organiza o discurso e é responsável por estratégias que conduzem o leitor: num
primeiro momento, o conduz para uma impressão, para, depois, através de outro texto,
abrir-lhe os olhos e levá-lo a uma outra direção interpretativa.
Ao perceber essas novas nuanças do
conto, ao perceber como tudo se altera na leitura sem que ao menos uma palavra
tenha sido trocada no texto, o leitor é jogado no reino da ficção e se defronta
com a consciência que exige o ato de narrar. O realismo evidente na primeira
leitura transforma-se em conjectura, de todo modo filtrada pelo ponto de vista,
pela percepção do narrador. Com isso, me parece que Salinger, esse autor tido
muitas vezes como infanto-juvenil, realiza aqui um jogo narrativo que propõe ao
leitor tomar consciência das idiossincrasias da ficção, de seus mecanismos e de
seu caráter essencialmente lúdico.
Dito isto, creio impossível não
remeter-me ao conto/ensaio Pierre Menard, autor do Quixote, de Jorge Luis
Borges (1998), bem como à sua poética da leitura como ato fundador da
escritura. Se, como nos ensina Borges, lembrando a clássica imagem de
Heráclito, nenhum livro é lido duas vezes da mesma forma (BORGES, 2002, p. 28),
arrisco-me a dizer que Salinger, a partir desta disposição dos fatos
narrativos, dota sua ficção de reflexões análogas às que construiu o mestre
argentino. Se o Dom Quixote de Menard é mais rico que o de Cervantes, Um dia
ideal para os peixes-bananas é um conto diferente a depender da experiência de
cada leitor. Se ele não tem familiaridade com a obra de Salinger, se já conhece
a família Glass de outros livros e, principalmente, se já leu ou não Seymour,
uma introdução, são fatores que vão determinar diretamente sua interpretação
do relato.
Por outro lado, Salinger parece presa
da mesma preocupação de Borges ao introduzir seus relatos: a preocupação de
desvelar, através de subterfúgios narrativos, o caráter inapelavelmente
ficcional de seus textos. Não podemos esquecer, por exemplo, que Buddy Glass é,
afinal de contas, um escritor e que, de uma maneira ou de outra, ele sempre
denuncia que o processo de produção de seus relatos é um processo de escritura,
nos quais muitas vezes entremeiam-se ao enredo comentários de ordem técnica
sobre suas escolhas narrativas.
É possível que, na declaração
destacada, produzida posteriormente à publicação de quase toda a sua obra,
Salinger esteja, através de indícios auto-referenciais, conectando
ficcionalmente todos os seus livros em torno dessa figura, Buddy Glass?
Particularmente, cremos que sim, é possível. Não que sua obra só faça sentido a
partir desta interpretação, tampouco que seja necessário passar por ela.
Parece-nos, no entanto, que Salinger o experiente Salinger, que deixou sua
pena sabe-se lá por quais motivos , ao por em seu último livro esta declaração
talvez ele até já soubesse que esse seria seu último livro , abriu outras
possibilidades de leitura de sua obra. Possibilidades essas que os admiradores
de sua prosa não podem deixar de considerar.
Referências
BORGES,
Jorge Luis. Pierre Menard, autor do Quixote. In: Obras completas: volume I (1923-1949). São Paulo: Globo, 1998.
________.
Cincovisõespessoais.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2002.
SALINGER, J. D. Franny & Zooey. Rio de Janeiro: Editora do Autor,
1961.
________.
O apanhador no campo de centeio. Rio
de Janeiro: Editora do Autor, 1969.
________.
Pracima com a viga, moçada/ Seymour, uma introdução. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
________. Nine stories. New York: Back Bay Books, 2001.
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. São Paulo: Cosac
Naify, 2004.
Clarisse Lyra Simões nasceu em 1988 e é
formada em Letras com Língua Espanhola pela Universidade Estadual de Feira de
Santana. Escreve em <maladresseedelicatesse.blogspot.com>.
[revista dEsEnrEdoS
- ISSN 2175-3903 - ano III - número 8 - teresina - piauí - janeiro fevereiro
março de 2011]