Entre os indígenas, nunca o
lugar sagrado se apresenta isoladamente ao espírito. Ele faz parte de um
complexo em que entram também as espécies vegetais ou animais que aí abundam em
certas estações, os heróis míticos que aí viveram, vaguearam, criaram e
frequentemente foram incorporados no solo, as cerimónias que aí se celebraram
periodicamente e, enfim, as emoções suscitadas por este conjunto. (Lucien Lévy-Bruhl)
A filosofia do habitar confronta-se
com diversos inimigos, dos quais destacaremos: o inimigo histórico, o inimigo
político e o inimigo sociológico.
Inimigo Histórico. Todas as teorias da
modernização afirmam que a modernidade conduziu
invariavelmente à secularização:
as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a
interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da
consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser
abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a
secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que
estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do
Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do
poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da
sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização
não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua
vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o
mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas.
Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de
Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve
maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social.
Mircea Eliade encara a dessacralização
da morada humana como parte integrante dessa gigantesca
transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas,
"transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos,
efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas
sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera
"máquina de habitar"
inserida e alinhada entre as inúmeras máquinas fabricadas em série nas
sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser
funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessário para a recuperação
da força-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma
bicicleta, um frigorífico ou um carro". A funcionalização da casa e do habitar operada por uma economia
de mercado que visa à colonização de toda a sociedade, da natureza e da própria
cultura, acabou por conduzir à perda
do mundoou, como
diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma
Eliade: Para os homens sem
religião, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. Até mesmo os cristãos urbanos abandonaram
a liturgia cósmica e,
por isso, a sua experiência religiosa já não é "aberta" ao Cosmos e o Mundo já não é sentido como obra de
Deus: a sua experiência religiosa empobrecida é estritamente privada e visa unicamente a sua
própria salvação. Historicamente, o inimigo do habitar autêntico é
o próprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por
isso, a filosofia do habitar é necessariamente uma crítica da irracionalidade do capitalismo, que assume
corajosamente o antropocentrismo para
melhor "resguardar a quadratura"
(Heidegger).
Inimigo Político. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais
aparentemente estáveis, o homem
secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurança. Aqueles que defendem a
importância crucial da casa na vida humana são vistos como indivíduos
suspeitos, burgueses ou conservadores. Os românticos reprovavam aqueles indivíduos que se encastelavam
na sua casa, levando aí uma vida inactiva e cómoda. Para Schiller, o homem deve
sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas
quotidianas e cívicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo,
segundo Schiller, após cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve
ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os
aspectos polarizados da vida humana são necessários, porque a saúde interior do
homem repousa no equilíbrio entre o trabalho e a luta no espaço externo que é o
mundo e a tranquilidade no espaço interno da casa.
Por isso, em vez de encarar a política
do sentido como uma estratégia conservadora, o pensamento de esquerda deve
aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (família), a pátria e
os seus valores intrínsecos:
a tarefa inalienável do homem é criar este espaço de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a
contra qualquer tentativa de invasão
alheia, nomeadamente da intervenção do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada
e íntima dos cidadãos.
Inimigo Sociológico. Este inimigo é relativamente recente, está associado à pós-modernidadee parece
ser mais um fantasma sociológicodo
que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas pós-modernas, o deambulador,
o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposição à figura moderna do peregrino, como se
estivéssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa
atitude passiva de infinita
mobilidade e de consumismo
voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocêntrico é pensamento
anónimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia do status quo,
bloqueando a mudança social qualitativa. A filosofia do habitar é clara e
frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociológico, mesmo daquele que
se afirma herdeiro de Marx.
HOMO RELIGIOSUS. A consciência mítica foi
alvo da atenção de Rudolf Otto, Ernst Cassirer, James G. Frazer, Van der Leeuw,
Lucien Lévy-Bruhl, Roger Callois e Mircea Eliade. O homem primitivo ou mesmo o homem pré-moderno é um homo religiosus, e a religião é,
segundo a definição feliz de Peter Berger, "o empreendimento humano pelo
qual se estabelece um cosmos sagrado", ou seja, "a religião é a cosmificação feita de maneira
sagrada". Como expoente máximo da auto-exteriorização do homem, a religião é a ousada tentativa
de conceber o universo inteiro, a totalidade do ser, como humanamente
significativo. O homem religioso é "sedento do ser" e o ser é, para ele, o próprio sagrado, tudo aquilo que se
manifesta e se nos mostra por oposição ao profano. Quando
tentou descrever "o algo inteiramente outro" (ganz andere) e
totalmente diferente do mundo da vida diário e da natureza, Rudolf Otto
acentuou que o numinoso impressiona o homem como um poder (majestas)
esmagador e terrível (mysterium tremendum) e estranhamente fascinante (mysterium
fascinans), diante do qual o homem tem o sentimento da sua profunda
nulidade. Apesar desta ambivalência
do sagrado, o homem primitivo só sabe viver no sagrado e, portanto,
num Cosmos que o protege
doCaos, num Nomos que o salvaguarda da Anomia. Por isso, a função principal
do mito é revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as
actividades humanas significativas: "o mito conta uma
história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o
tempo fabuloso dos «começos»", ou seja, "o mito conta como, graças
aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a
realidade total, o Cosmos, quer seja apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie
vegetal, um comportamento humano, uma instituição" (Eliade). O homem
primitivo é obrigado a recordar a história mítica da sua tribo, a iniciar-se
nos seus mistérios e a reactualizar periodicamente grande parte daquilo que se
passou ab origine, de modo a manter a ordem consagrada pelos Deuses no
fabuloso tempo dos "começos", quando o Cosmosemergiu do Caos que continua a enfrentar como o seu terrível arqui-adversário. Refundar ritualmente
o Cosmos é reerguer constantemente o escudo protector que defende o homem e o
"nosso mundo" do terror
da anomia e do Caos.
Neste universo religioso, Mircea
Eliade soube destacar, no seu estado puro, o comportamento religioso em relação
à habitação, e esclarecer a concepção do mundo que ele implica. A experiência
religiosa pressupõe uma bipartição do mundo no sagrado e no profano, mas este
dualismo ontológico não é um dualismo
embriológico, porque o profano pode ser transfigurado e transmutado no
sagrado pela dialéctica da hierofania e o sagrado transformado no
profano pelos inúmeros processos de dessacralização. Toda a vida do
homem arcaico é uma repetição ininterrupta de gestos inaugurados por outros que
não eram homens. Isto significa que tudo o que ele faz, incluindo a construção de edifícios, já foi feito
pelos deuses, antepassados e heróis míticos in illo tempore, quando
da criação do mundo.
Ora, esta repetição ritual ou
reactualização de gestos paradigmáticos feitos ab origine revela
uma "ontologia original"
e, neste sentido, a concepção do mundo subjacente ao comportamento religioso em
relação à habitação pode ser vista como uma ontologia (religiosa) do
habitar. A noção deHistória, com o devir e a irreversibilidade do tempo, é
absolutamente alheia a esta ontologia do habitar. Como escreve Mircea Eliade:
"«Situar-se» num lugar, organizá-lo, habitá-lo, são acções que pressupõem
uma escolha existencial: a escolha do Cosmos que se está pronto a assumir
«criando-o»". Mas, de acordo com a ontologia arcaica, este Cosmos é sempre a repetição e
reactualização ritual do Cosmos exemplar criado e habitado pelos Deuses in
illo tempore. O Cosmos fabricado pelos homens participa da santidade da
obra primordial dos Deuses. O "nosso
mundo" é construído mediante uma repetição ritual da Cosmogonia.
1. O Espaço Sagrado. Para o homem religioso,
o espaço é heterogéneo e, por isso, apresenta roturas e fissuras que
possibilitam experienciar partes e sectores de espaço qualitativamente
diferentes. Esta heterogeneidade espacial permite
a experiência de um espaço sagrado, "forte e
significativo", distinta da experiência de outros espaços não-sagrados, absolutamente
amorfos, e constitui uma experiência primordial,
homologável à fundação do mundo. A rotura
operada no espaço pela manifestação de qualquer hierofania permite
a constituição do mundo, no
sentido de descobrir o ponto fixo,
o eixo central de toda
a orientação futura. A manifestação
da hierofania rompe a homogeneidade do espaço, ao mesmo tempo que
revela uma realidade absoluta:
"A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo" (Eliade).
Para o homem religioso, nada pode começar sem esta orientação prévia que implica a aquisição de um ponto fixo, o Centro do Cosmos, no qual procura
estabelecer-se. Isto significa que "para viver no mundo, é preciso
fundá-lo" (Eliade): a descoberta e a projecção do Centro equivale à
criação do mundo.
Em contrapartida, para o homem profano, como o homem das
sociedades modernas, o espaço é homogéneo e neutro: nenhuma rotura diferencia
qualitativamente as diversas partes e sectores do espaço. Apesar de ser um
espaço homogéneo e carente de estrutura e, portanto, de diferenciação
qualitativa, o espaço geométrico não
deve ser confundido com a experiência
do espaço profano que se opõe à experiência do espaço sagrado. A manifestação da hierofania revela
um espaço sagrado, ao mesmo tempo que permite obter um ponto fixo e, portanto,
a orientação futura na homogeneidade espacial caótica: o fundar o mundo e viver
realmente no mundo. Ora, a experiência do espaço profano conserva a homogeneidade e a relatividade do espaço. Sem a obtenção
de um ponto fixo, não é possível adquirir uma verdadeira orientação: o Cosmos estilhaça-se em "fragmentos
de um Cosmos fragmentado,
massa amorfa de uma infinidade de "lugares" mais ou menos neutros
onde o homem (profano) se move, forçado pelas obrigações de toda a existência
integrada de uma sociedade industrial".
2. A Casa. Toda a construção ou edificação humana tem como modelo exemplar
a Cosmogonia. Ainstalação
num território desconhecido e a construção de uma morada exigem uma decisão
vital: assumir a criação do mundo que se deliberou habitar, imitando a obra
dos Deuses. Para o homem religioso, "a casa é sempre santificada",
porque constitui uma imago mundi e o mundo é uma criação
divina. A homologação da morada ao Cosmos é feita ritualmente através de dois
processos: 1) pela projecçãodos
quatro horizontes a partir de um ponto central, no caso de uma aldeia, ou pela
instalação simbólica do Axis Mundi, no caso de uma
habitação familiar; e 2) pela repetição,
através de um ritual de construção, do acto exemplar dos Deuses. O primeiro
processo "cosmifica" um espaço pela projecção dos horizontes ou pela
instalação do Axis Mundi. Toda a habitação humana comporta um
"aspecto sagrado pelo facto de reflectir o mundo" e, na sua
estrutura, revela-se um simbolismo
cósmico. A casa é uma imago mundi e, como tal, situa-se
simbolicamente no "Centro do Mundo".
Assim, por exemplo, como mostrou
Eliade, a morada das
populações primitivas árcticas apresenta um poste central que é assimilado
ao Axis Mundi, isto é, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo que ligam a Terra
ao Céu. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar
central: "a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos
Pilares do Mundo e são designados por este nome" (Eliade). Na base deste
poste central, têm lugar os sacrifícios em honra do Ser Supremo celeste. Toda a
morada humana repete a cosmogonia, situa-se perto do Axis Mundi e,
por tudo isso, representa e reflecte o Cosmos: o seu habitante vive implantado
na realidade absoluta.
A construção de uma casa é sempre a
fundação de um cosmos num caose, por isso, a casa é uma
imagem do mundo na sua totalidade, uma imago mundi. A sua
construção é a repetição da criação do mundo, uma realização constantemente
renovada e reiterada da obra primigénia dos Deuses. A organização humana do
espaço é, pois, a repetição de um acto dos tempos primitivos: "a
transformação do caos em cosmos por meio do acto divino da criação". A
morada humana é o microcosmos que
o homem constrói imitando a criação-arquétipo dos Deuses. Para o homem arcaico,
há uma homologia entre a criação do mundo e a construção da casa, porque,
"organizando um espaço, se reitera a obra exemplar dos Deuses".
Cosmificar é consagrar e consagrar é repetir ritualmente a cosmogonia. Mas o
homem arcaico vai mais longe e "cosmisa" o próprio corpo: "«Habita-se» o corpo da
mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou para si
mesmo" (Eliade). O território habitado, o Templo, a Casa e o Corpo são
Cosmos dotados de uma "abertura
superior" que lhes possibilita comunicar com o outro nível
transcendente, o sagrado.
3. O Templo. O Templo é o lugar santo por excelência, a casa dos Deuses. Nas grandes
civilizações asiáticas e judaico-cristãs, o Templo é simultaneamente uma imago
mundi e uma reprodução terrestre de um modelo transcendente. O
Templo constitui uma imago mundi, porque o mundo é obra dos deuses
e, como tal, é sagrado. Porém, como lugar sagrado por excelência, o Templo
"re-santifica continuamente o Mundo, porque o representa e contém ao mesmo
tempo" (Eliade). Graças ao Templo, o mundo é re-santificado na sua totalidade e, deste modo, é
continuamente purificado pela
"santidade dos santuários". Desta diferença ontológicaentre o Cosmos e a sua imagem santificada
que é o Templo resulta a concepção de que a santidade do Templo "está ao
abrigo de toda a corrupção terrestre", por causa do seu plano
arquitectural ser obra dos Deuses e, por consequência, se encontrar muito perto
dos Deuses no Céu.
Mircea Eliade recorre a textos
bíblicos para mostrar que, para o povo de Israel, os modelos do tabernáculo, de
todos os utensílios sagrados e do Templo, foram criados por Jeová desde a
eternidade e foi Ele que os revelou aos seus eleitos, em especial Moisés, David
e Salomão, para que fossem reproduzidos sobre a terra. A Jerusalém celeste foi criada por
Deus ao mesmo tempo que o Paraíso e a cidade de Jerusalém é a reprodução aproximada do modelo transcendente: a cidade pode
ser maculada pelo homem, mas o seu modelo goza de uma existência espiritual,
incorruptível e celeste. A basílica
cristã e, mais tarde, a catedral, retomaram e prolongaram estes simbolismos da "geometria celeste" e a Igreja foi
concebida como imitação de Jerusalém celeste. A arquitectura sacra retoma e desenvolve o simbolismo cosmológico e todos os
rituais relativos aos Templos, às cidades e às casas derivam, em última
análise, da "experiência primária do espaço sagrado".
4. A Cidade. Tal como o Templo ou a casa, a cidade que mais não é do que uma
"grande casa" resulta de um acto consciente de fundação. O exemplo
mais conhecido é o da fundação de
Roma, que nos foi transmitido pela narrativa de Plutarco: "Segundo
inúmeras tradições, a criação do mundo começou num centro e, por esta razão, a
construção da cidade deve também desenrolar-se em volta de um centro. Depois de
ter aberto um fosso profundo (fossa), Rómulo encheu-o de frutos,
cobriu-o de terra, erigiu por cima dele um altar (ara) e traçou com o
arado o sulco dos limites de protecção (designat moenia sulco). O fosso
era um mundus e, como observa Plutarco, «deu-se a este fosso,
como ao próprio universo, o nome de "mundo" (mundus).
Este mundus era o lugar da intersecção dos três níveis
cósmicos (a Terra, o Céu e o Inferno)». É provável que o modelo primitivo de
Roma tenha sido um quadrado inscrito num círculo: a difusão extremamente
extensa da tradição gémea do círculo e do quadrado leva a essa suposição"
(Eliade).
A cidade é, portanto, uma cópia do
cosmos, ou melhor, uma reconstrução do mundo, projectada, por meio do ritual
de construção, no centro
do cosmos e, tal como o Cosmos exemplar que se origina a partir do
seu Centro, a cidade estende-se
a partir de um ponto central que é como que o seu "umbigo", donde se projectam os quatro horizontes nas quatro
direcções cardeais. A cidade é, portanto, a imagem do Cosmos e o modelo
exemplar do habitat humano. Como já vimos, o "nosso mundo" é um mundo total e
organizado num Cosmos, fundado pela imitação da obra exemplar dos Deuses. A
cidade é precisamente o "nosso mundo" e, como tal, está sujeita a
sofrer um ataque exterior que
ameaça transformá-la num Caos.
Os seus adversários são assimilados aos inimigos dos Deuses, os demónios, e sobretudo ao arquidemónio, o Dragão primordial
vencido pelos Deuses nos começos dos tempos: "O ataque do «nosso mundo»
equivale a uma desforra do Dragão mítico, que se rebela contra a obra dos
Deuses, o Cosmos, e se esforça por reduzi-la ao nada. Os inimigos enfileiram
entre as potências do Caos. Toda a destruição de uma cidade equivale a
uma regressão ao Caos. Toda a vitória contra o atacante reitera a vitória
exemplar do Deus contra o Dragão, isto é, contra o Caos" (Eliade).
Toda habitação humana é consagrada pela teofania(Robertson
Smith) e, como espaço sagrado, está encerrada e protegida por um muro ou vedação. Este muro visa não só garantir a presença contínua de uma
cratofania ou
de uma hierofania no interior do recinto, como também preservar
o próprio profano do perigo a que se exporia se ali penetrasse sem os devidos
cuidados, porque osagrado é perigoso. De modo
similar, as muralhas da cidade,
antes de serem defesa militar,
são defesa mágica, porque
garantem a manutenção, no meio de um espaço caótico, povoado de demónios e de larvas, de um espaço organizado, cosmicizado e, portanto,
provido de um Centro. Segundo Eliade, o simbolismo do labirinto incluía também a ideia de defesa de um Centro: entrar num
labirinto tinha o valor de umainiciação. Em termos militares, o
labirinto impedia ou, pelo menos, dificultava a penetração do inimigo no centro da cidade, cuja configuração
reproduzia o próprio Cosmos, mas, em termos religiosos, a sua função era
impedir o acesso da cidade aos espíritos
de fora, aos demónios do deserto e à morte e, muitas vezes, a sua
finalidade era defender um "centro". Neste caso, o labirinto
representava o acesso iniciático à
sacralidade, à imortalidade e à realidade absoluta: "O acesso ao centro
equivale a uma consagração,
a uma iniciação" (Eliade), cujo objectivo é produzir uma modificação
radical do estatuto religioso e social da pessoa que vai ser iniciada, isto é,
uma mutação ontológica da condição existencial do neófito
que, deste modo, abandona uma existência profana e ilusória e adquire uma
existência real, durável e eficaz.
5. Conclusões Provisórias. Mircea Eliade mostrou que o sagrado e o profano são
duas modalidades de experiência e de ser no mundo, isto é, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história, que devem ser
estudadas pela antropologia
filosófica. A dessacralização do
mundo operada pela modernização não aboliu certos traços da conduta
do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivências"
ou de "comportamentos
cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este
propósito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado
como o nosso, o «sagrado» se encontra presente e activo principalmente
nos universos imaginários".
Ora, como mostrou Bachelard, as experiências
imaginárias fazem parte do ser humano total e, ao contrário do que pensa Eliade, estas
experiências não são nocturnas mas diurnas ou, como diz Bloch, são sonhos
de um mundo melhor. Se o objectivo é constituir uma autêntica
antropologia filosófica, devemos ver nessas "sobrevivências" o
"traço fundamental do habitar": "Ser homem consiste em
habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra"
(Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse traço fundamental da condição humana que
Eliade reconduz à nostalgia do Paraíso são
os seguintes:
1) A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mítico, a casa era regida de
maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do
cosmos, mas, após a sua dessacralização, a estrutura do seu espaço é
"subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do
mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona
como ponto fixo de referência e
de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter
percorrido os lugares do mundo exterior.
2) A casa continua a conservar o seu aspecto particular que só pode
ser captado através da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carácter de
sortilégio da violação do domicílio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade
que possibilitam ao hóspede desfrutar a protecção da casa e atribuem ao dono a
tarefa de zelar para que ninguém lhe cause qualquer tipo de dano. A casa é
potencialmente um espaço inviolável e, por isso, de acesso limitado aos
estranhos e aos inimigos.
3) A casa continua a ser uma esfera inviolável de paz, tranquilidade, intimidade e repouso,
marcadamente separada do mundo exterior. Já não se trata de defender a casa da
penetração de demónios hostis que ameaçam o homem fora da sua casa e cuja infiltração
deve ser evitada por meios mágicos, mas o carácter ameaçador deste mundo
alheio não desapareceu completamente, sendo protagonizado por
novas forças sociais, políticas, económicas e ideológicas que se introduzem no
interior do espaço da casa, sem serem desejáveis ou mesmo aceites.
4) A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo
em miniatura que está em correspondência com o mundo exterior. Se a casa é o
nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, então ainda é um cosmos e, sendo
assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criança vê a sua
casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo pátrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no
mundo exterior. Graças ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a
habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em
sua casa.
Coube a Minkowski analisar o carácter
da morada que é a intimidade, mas, para desfrutar
essa intimidade da casa, é preciso partilhá-la com a comunidade da família.
Deste modo, a casa e a família encontram-se inseparavelmente ligadas para criar
a sensação humana de amparo. O laré um
espaço aberto a um círculo reduzido de amigos e de pessoas íntimas. Segundo
Minkowski, a essência da casa não pode ser captada a partir do indivíduo
isolado, o celibatário ou o viúvo, mas apenas a partir da comunidade familiar e
dos amigos próximos e íntimos: a casa é fundada não por um mas por dois
indivíduos. Sem se aperceber dessa conexão essencial, Minkowski retoma
uma noção antiga de lar.
Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego
ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas.
Era obrigação do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande
desgraça seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram
cobertos de cinza os carvões, para se evitar que se consumissem inteiramente
durante a noite; pela manhã, o primeiro cuidado era avivar o fogo e alimentá-lo
com alguns ramos secos. O fogo só deixará de brilhar sobre o altar quando toda
a família estivesse extinta; lar extinto, família extinta, eram expressões
sinónimas entre os antigos". O capitalismo ameaça destruir este fogo
do lar e, com ele, a própria humanidade do homem, que mantém prisioneiro da condição metabolicamente reduzida numa
terra
devastada. "Eu habito, tu habitas, nós habitamos" a
"nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a
"nossa pátria": é assim que o revolucionário conjuga o verbo
"habitar". O devaneio do sonhador solitário, até mesmo quando
revisita a casa paterna ou
a casa natal, por vezes
numa atitude de nostalgia,
mas frequentemente numa atitude de
esperança militante, sonha diurnamente a casa onírica: a pátria
da identidade da humanidade naturalizada e da natureza humanizada.
J. Francisco
Saraiva é licenciado em Filosofia (Faculdade de Letras da Universidade
do Porto). Estudos em Medicina na Universidade do Porto. Mestrado em Filosofia
Moderna (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa). Doutoramento em Ciências Biomédicas (Instituto de Ciências Biomédicas
Abel Salazar da Universidade do Porto). Professor de "Teorias da
Comunicação Social e Técnicas de Investigação" e do módulo de
Bioestatística da disciplina de "Bioestatística e Epidemiologia", em
Porto - Portugal.